Brasil pueril
Redação DM
Publicado em 9 de agosto de 2018 às 23:32 | Atualizado há 7 anos
Ouvi de um valente comentarista do futebol em um canal a cabo global que os ares europeus conspiram contra a qualidade dos jogadores nativos. Para ganhar a Copa, é preciso jogar à brasileira, aí sim, a coisa vai. O comentarista talvez não tenha percebido que o balípodo mudou demais.
Sou do tempo em que os craques, até de seleção, entravam no vestiário com as chuteiras embrulhadas em papel-jornal. Valiam então o fino trato da Leonor e a raça de cada um. A picardia, dizia-se então. Foi a chave do sucesso de 1958 e 1962, e não creio que tanto Vicente Feola quanto Aymoré Moreira fossem napoleões do domingo.
Mais “moderno”, certamente, foi João Saldanha, que estruturou o time de 1970, enfim herdado por Zagalo. Mesmo ele, entretanto, teria hoje dificuldade em se adaptar ao xadrez desenhado sobre os gramados atuais, e nem sei se os heróis de antanho ainda o seriam.
A importância do técnico como estrategista, tático pontual em qualquer circunstância, cresceu brutalmente, para empregar a contento, conforme a situação, a pujança física deste ou a visão panorâmica daquele, peões, cavalos, bispos, torres.
Nada disso impediu a presença de mestres em campo, os Pirlo ou os Iniesta, assim como nesta última Copa, essencialmente defensiva, brilhassem Modric, Shaqiri, Hazard, De Bruyne, Pogba. Constato o óbvio, está claro, mas também que a evidência solar não alcança o torcedor brasileiro.
O que não deixa de ser altamente representativo, igual à extraordinária capacidade de Neymar simbolizar tão explicitamente a nossa patética parvoíce. Ele é o estandarte do país pueril e mesmo ridículo. Não é que lhe faltem talentos, mas o indivíduo é, obviamente, irrecuperável, eterno mimado.
Estive longe do Brasil por duas semanas, e verifico ao regressar que nada mudou, e nem poderia, de fato, em relação à inércia do povo, à corrida eleitoral a consagrar a fraude pela ausência do favorito, à entrega progressiva dos bens do País, estupendos e infindos, ao capital estrangeiro, à prepotência da casa-grande, à gangue no poder, e assim por diante.
Não enxergo a culpa do povo, a casa-grande foi eficaz na missão de mantê-lo na senzala. Seu circo é o futebol e, se o pão escasseia, não se incomoda se os abastados comem brioches. Mas o que mais impressiona no retorno, como em um acordar repentino, é a permanência da antiga dicotomia contada por Gilberto Freyre. A comparação dói. Pela Europa que visitei, esquerda e direita sobrevivem com empenho.
Não falta quem finja ser o que não é, e nem por isso o fingimento funciona. Macron é direita, Mélenchon é esquerda. Matteo Salvini é extrema-direita, como Marine Le Pen. Renzi tentou se apresentar como de centro-esquerda, mas é direita de inspiração democrata-cristã, aquela de Andreotti e Cossiga.
Por aqui se percebem tão somente a minoria rica e a maioria pobre, e aquela cuida apenas de manter o privilégio. Raríssimos os exemplares de esquerdistas autênticos. E o Brasil que se moa.
A falta absoluta de espírito crítico combina à perfeição com a arrogância de quem se apresenta como classe alta ou média, exígua parcela da população. Aí figuram os cidadãos considerados escolados, a bem da verdade factual provincianos incapacitados visceralmente à autoironia.
Levam-se a sério sem remédio. A fonte de inspiração é a mídia nativa a praticar o pensamento único, porta-voz da casa-grande, enquanto joga ao lixo as regras mais comezinhas do jornalismo.
No caso o reflexo é recíproco. A mídia, em todas as suas manifestações, espelha aquilo que poderíamos definir como a sociedade brasileira, contemporânea e ao mesmo tempo medieval no sentido mais nevoento do termo.
(Mino Carta, jornalista, editor, escritor e pintor ítalo-brasileiro)