Direito não é lei, é justiça
Diário da Manhã
Publicado em 1 de agosto de 2018 às 22:39 | Atualizado há 7 anos
É preciso, antes de tudo, entender a relação básica (ou diferença) entre direito e justiça. O direito não pode ser entendido apenas como legislação que controla o comportamento da sociedade, pois a legislação apresenta por vezes desvios do direito como ideal de justiça (ideal não abstrato, mas vivenciado), quando resguarda, por exemplo, interesses classísticos ou cassuísmos, em nome do poder estabelecido.
Se, por um lado, a lei emana do estado, por outro lado, o estado permanece ligado à classe dominante que institucionalizou o poder, a mesma classe que detém os meios de produção e controla o processo econômico. No estado capitalista, os órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, refletem, assim, a vontade da classe dominante.
Identificar o estado com a lei e esta com o estado, seja na sociedade capitalista ou socialista, seria identificar o direito com a propriedade pública ou privada. O direito deve ser identificado com a justiça, valor de medida e bem-social que paira acima da lei no sentido meramente formal. Na escala lei-direito-justiça, o direito é o ponto nuclear entre a justiça e a lei.
APROPRIAÇÃO DA LEI
O estado, representando a classe dominante, por vezes se apropria da lei para garantir uma estrutura implantada e manter os esquemas vigentes em nome de uma aparente neutralidade, que transforma o direito num instrumento de controle que reprime o cidadão ante o poder estabelecido. Isto se dá mais como um conjunto de normas estatais do que como defesa dos princípios de cidadania. É o caso, por exemplo, das leis da política fiscal.
Em sentido dialético, o direito faz parte do processo histórico e deve refletir o constante progresso das sociedades, e não o constante sucesso das classes dominantes. Nem sempre o círculo da legalidade coincide com o da legitimidade – adverte Hermann Heller. – Quanto falta esta identidade histórica, o direito se transforma em norma e este em sacralização do poder estatal, fugindo ao caráter de cientificidade que deve presidir a evolução do direito.
Lembrando a Declaração Universal (1948), as disposições ditas legais não podem contrastar com os direitos universais do homem. Nessa perspectiva, o direito não deve ser entendido como um sistema pronto nem como valor absoluto, como modelo fixo nem como cabide metafísico, em que se pendura a realidade dos fenômenos sociais. As coisas tanto na natureza como na sociedade, se mantêm em movimento constante e contínua transformação.
IDEOLOGIAS JURÍDICAS
Em lugar de um direito exercitado cientificamente, o que tem ocorrido entre nós é um embate entre ideologias jurídicas, com diferentes posições mentais diante da realidade factual. Isso tem ocorrido notadamente nas últimas decisões de nossas mais altas cortes, em que a realidade parece representada, não como um conjunto de ideias, mas de opiniões preconcebidas. A apropriação da realidade segundo ideias preconcebidas tem sido a práxis jurídica dominante no país.
A ideologia jurídica como falsa consciência é a distorção da realidade mediante uma ideia preconcebida pela corte jurídica e transmitida à sociedade, que, por sua vez a transmite ao indivíduo segundo a sua classe. Assim tem acontecido no Brasil, onde o capitalista, o operário, o racista, o machista, o feminista, cada qual vê a realidade social como rótulo, um falso valor no qual se apoia cada indivíduo, mesmo sem má-fé, em função de sua classe ou engajamento social.
O que não pode haver é o predomínio de ideologias nas instituições, com distorção consciente e voluntária da escala de valores, quando a sociedade assume o que Marilena Chauí chama de “discurso competente”, para assenhorear-se da realidade como forma de dominação, criando dessa forma um “discurso conveniente”, mediante o qual as classes privilegiadas substituem a realidade em si pela imagem como a representam, tentando impô-la aos demais.
FATO, VALOR E NORMA
Reportemo-nos à tríade processual preconizada por Miguel Reale: fato, valor e norma. Na norma se enquadra o fato, que é valorado em função da ordem social. O direito, então, não é a lei, nem o fato em si, mas ambos subordinados a um valor maior, que é a justiça. O julgador não deve ater-se à letra fria da lei, que pode às vezes distorcer o fato.
O direito dissociou-se da filosofia e não buscou suporte na sociologia, em função da problemática social. Na atual práxis jurídica do Brasil, a doutrina cedeu lugar à jurisprudência. A jurisprudência cedeu lugar à jurispendência. A jurispendência cedeu lugar à jurispolítica, criando uma jurispendenga com malabarismo da técnica processual. As decisões judiciais viraram um jogo de poder.
Um juiz, por exemplo, desobedece a um desembargador que, por sua vez, se contrapõe aos seus pares. O desembargador pode ser acusado de prevaricação, mas por que não o juiz de desobediência(?) A corte faz os recortes dos trechos e entrechos da trama processual e decide por outros fechos, incluindo novos apetrechos. Assim prossegue a nova novela jurídica com nossos atores jurídicos contracenando no cenário nacional. E como em toda novela, a racionalidade acaba cedendo lugar à passionalidade.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)