O inferno astral de governadores e ex-governadores
Diário da Manhã
Publicado em 29 de setembro de 2018 às 23:52 | Atualizado há 7 anos
O Brasil está em processo de mudanças. Uma dessas mudanças atrela-se a um acontecimento amplamente divulgado pela mídia: a prisão de governadores e ex-governadores. Acabaram-se os tempos em que muitos chefes dos Executivos estaduais transformavam os estados por eles governados numa espécie de baronato completamente blindado e pouco transparente. Os fatos evidenciam uma mudança de realidade; vejamos alguns exemplos dessa nova realidade.
Esse novo ciclo de prisão de governadores e ex-governadores iniciou com a detenção do então chefe do Executivo do Distrito Federal, José Roberto Arruda. A prisão dele foi inédita, pois nunca um governador tinha, até então, sido preso no país em pleno exercício da função. O pano de fundo que justificou a prisão de Arruda se atrelou ao recebimento de supostas propinas oriundas da construção de um dos maiores elefantes brancos hoje existentes no Brasil: o Estádio Mané Garrincha, este se transformou numa verdadeira usina de deficits, num verdadeiro culto ao desperdício do dinheiro público. A obra, inicialmente orçada em 600 milhões de reais, foi concluída ao preço de 1,6 bilhão de reais. Quase o triplo do que estava originalmente previsto no orçamento.
O excedente de um bilhão de reais sumiu pelo ralo da corrupção. Colocado em liberdade, o então governador do Distrito Federal voltou a ser preso. Sustentava essa nova prisão a acusação de que, em liberdade, ele atrapalhava as investigações em curso. Estava feito o estrago na vida pública de José Roberto Arruda: de político influente ao amargor do ostracismo. Este é um preço que nenhum homem público gosta de pagar.
O tucano Carlos Alberto Richa — conhecido como Beto Richa — é outro ex-governador acusado de se envolver com práticas nada republicanas ocorridas nos tempos em que ele era governador do Paraná. O atuante Ministério Público paranaense denunciou o ex-governador por mau uso do dinheiro público no programa de manutenção das estradas rurais.
Inúmeras foram as irregularidades encontradas nesse programa. Vejam-se algumas delas: Pagamento de propinas a agentes públicos, direcionamento de licitações públicas para favorecer determinadas empresas, lavagem de dinheiro e obstrução da justiça são algumas das acusações imputadas ao ex-governador do Paraná.
Preso e já solto por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, Beto Richa é hoje um candidato à procura da blindagem de que necessita: o Senado Federal. Queimado ante a opinião pública, o ex-governador do Paraná vê sua candidatura ser questionada por aliados, inclusive, pela atual governadora do Paraná, Maria Aparecida Borghetti.
A tão almejada blindagem do foro privilegiado concedida a políticos como Beto Richa pode não se consolidar. Mesmo que se consolide, terá esse governador tucano de enfrentar o julgamento das urnas. Sem o foro privilegiado, qualquer político que tenha contas a ajustar com a justiça se torna bastante vulnerável. Beto Richa vive hoje o seu inferno astral.
Do ex-governador do Paraná, chegamos ao ex-governador do Rio de Janeiro formalmente condenado a mais de 150 anos de prisão. Falo de Sérgio Cabral. Este, pelo transcorrer dos fatos, continuará sendo, por um bom tempo, inquilino das prisões cariocas.
Sob a gestão dele, pesam acusações de corrupção em praticamente todas as áreas de atuação do governo: saúde, educação, empresas estatais…, mas fiquemos por aqui, pois a lista dos delitos é grande.
O grande erro de Sérgio Cabral foi confiar demasiadamente na cultura da impunidade. Não acreditou numa mudança de realidade. Viu a si mesmo como uma espécie de semideus, acima de tudo e de todos. Confiou em demasia no seu prestígio político. Ledo engano. Do paraíso rumou ele direto ao inferno vivido aqui mesmo na Terra.
O sorriso fácil de Sérgio Cabral nos tempos da badalação de há muito não existe mais. Preso há mais de dois anos, hoje, ele vive inserido numa realidade bem diferente daqueles áureos tempos em que cruzava os céus do Brasil nos jatinhos de seus amigos empresários rumo ao chamado “circuito Elizabeth Arden”: Londres, Paris e Nova York. Não há preço maior do que a perda da moral. Esse é o preço que hoje paga o cabisbaixo Sérgio Cabral.
Falemos agora de Mato Grosso do Sul, terra em que dois políticos — governador e ex-governador — vêm tendo dificuldades para explicar seus atos frente ao governo do estado.
O primeiro deles é o atual governador Reinaldo Azambuja. Contra ele, pesa a acusação de ter recebido 70 milhões de propina em troca de benefícios fiscais. A operação Vostok, deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, prendeu 14 pessoas, incluindo um dos filhos do governador, Rodrigo de Souza.
Reinaldo Azambuja é candidato à reeleição. Vive hoje a dúvida de quanto esse episódio prejudicará sua campanha política. Sem a blindagem do foro privilegiado, a vida do governador ficará mais difícil.
Não menos difícil é a situação do ex-governador do mesmo Mato Grosso do Sul preso duas vezes pela Polícia Federal. Trata-se de André Pucinelli. Duas graves acusações pairam sobre ele. A primeira delas denuncia o então governador pelo desvio de 350 milhões de reais dos cofres públicos. Na segunda, a Polícia Federal apresenta provas do suborno de 1,2 milhão à empresa do filho do governador, André Pucinelli Júnior. A candidatura de André Pucinelli ao governo do estado pelo MDB foi para o espaço. Atualmente, pai e filho encontram-se presos no Centro de Triagem de Campo Grande.
Não poderia encerrar estes escritos sem citar o calvário que hoje vive o tucano Aécio Neves. Aécio ocupou cargos de relevante importância no seu estado e no governo federal. Presidente da Câmara dos deputados, senador, governador de Minas Gerais, presidente do PSDB e candidato à presidência da República. A carreira política do neto de Tancredo Neves só tinha o céu como limite. Joesley Batista, todavia, foi a pedra que apareceu no seu caminho. O dono da JBS apresentou ao Ministério Público um vídeo do primo do ex-governador de Minas recebendo, em nome dele e em dinheiro vivo, a bagatela de 2 milhões de reais. A partir daí, veio o preço a pagar.
Aécio escapou por pouco da prisão, mas não escapou de enorme desgaste político. No PSDB, nem o candidato de seu partido, Geraldo Alckmin, nem o candidato ao governo de Minas Gerais, Antônio Anastasia, querem ter a imagem deles ligada a de Aécio Neves. Ciente da situação e temeroso de não conseguir a aprovação do povo mineiro, o tucano optou pelo caminho mais fácil para obtenção da blindagem: candidatar-se a deputado federal. Politicamente falando, não restam dúvidas de que Aécio Neves pagou o preço de ver hoje diminuída sua representatividade política.
Posto isso, volto para onde comecei e indago: por que razão é hoje mais fácil prender governadores e ex-governadores?
Eis um bom caminho que nos aproximará da realidade dos fatos. É prática comum, em inúmeros estados brasileiros, os governos estaduais cooptarem as instituições responsáveis pelo controle de suas ações. Nesse sentido, os controlados são capturados pelos controladores.
Instituições como os Ministérios Públicos estaduais, Tribunais de Contas e até mesmo alguns Tribunais de Justiça, de certa forma, constantemente, gravitaram em torno dos executivos estaduais. Nesse contexto, os governadores, sempre, tiveram controle ou influência das situações.
Veja-se o caso das instituições responsáveis pela defesa da sociedade — os Ministérios Públicos. Pode-se contar nos dedos as unidades da federação onde os governos estaduais se interessam a dispor recursos para os Ministérios Públicos contratarem equipes de peritos qualificados tão necessários para o aumento da eficácia das ações de promotores e procuradores de justiça. Ninguém joga contra si mesmo.
Essa mesma situação ocorre em inúmeros Tribunais de Contas do país. Nestes, os conselheiros, diretamente nomeados pelos governadores, carregam dentro de si o sentimento de gratidão e fidelidade por quem os indicou para o cargo. De igual forma, levam consigo esse sentimento de gratidão aqueles desembargadores que adentram pelas Cortes de justiças estaduais tendo como padrinhos os governadores.
São fatos dessa natureza que alimentam a falta de transparência de inúmeras ações predadoras de governos. Sem a luz do Sol nada é proibido porque tudo é permitido. Em situações como essa, não existe preço a pagar.
As realidades mudam como as imagens de um caleidoscópio. O atual momento nos premia com uma nova imagem que está sendo paulatinamente construída. Sair do patrimonialismo estatal que acima descrevi rumo a um novo tipo de Estado não é tarefa fácil. Mas é perfeitamente possível. Uma nova realidade já existe entre nós. Nessa nova realidade vem surgindo novas instituições impregnadas de novos valores.
Esse é o caso da Polícia Federal e de muitos Ministérios Públicos estaduais. O exemplo do dinâmico Ministério Público paranaense deve ser seguido. As ações investigativas dessa instituição paranaense causaram consideráveis danos políticos à carreira do ex-governador Beto Richa.
Enfim, o que mais vemos hoje são governadores e ex-governadores em busca do voto que os legitime seja para um novo mandado de governador, deputado federal ou senador. Pouco importa o cargo. O que importa mesmo é a blindagem do foro privilegiado que esses cargos proporcionam. O medo de ser preso é um excelente sintoma de que o Brasil construído na calada dos gabinetes, léguas distante do interesse público, tende a não existir mais. Ainda bem que o “a quem muito é dado, muito será cobrado”, deixou de acontecer só nas sagradas escrituras. Te cuida Goiás,pois a bruxa está solta.
(Salatiel Soares Correia é Engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, Mestre em Planejamento Energético pela UNICAMP. É autor, entre outras obras, de Cheiro de Biblioteca. E-mail: salatielcorreia1@hotmail.com)