Pedro Ludovico, uma alma do mundo
Redação DM
Publicado em 24 de outubro de 2016 às 23:52 | Atualizado há 6 mesesO fundador de Goiânia nasceu na Cidade de Goiás, em 23 de outubro de l891. Foi criado sem pai. João Teixeira Álvares abandonou Josefina Ludovico Teixeira grávida de Pedro. Ela o criou, e aos outros filhos, sozinha, enfrentando não só dificuldades financeiras, mas, também, os preconceitos discriminatórios da época. Imaginem o inferno que devia ser a vida de uma mulher “largada do marido” em uma sociedade tradicionalista, paternalista, ciosa de suas origens aristocráticas, orgulhosa de seus brasões azinhavrados.
Penso que isto deve ter plasmado o caráter de Pedro, feito dele um homem de hábitos sóbrios, quase espartanos, de uma têmpera inquebrantável, emocionalmente árido. Um homem desde muito cedo condicionado pela vida a confiar apenas em sua própria força. Mauro Borges me disse certa vez: “Meu pai era brabo”. Ele disse “brabo” e não “bravo”. Quer dizer: o homem era autoritário e principista, “sistemático”. E também “bravo”, com v, pois nunca teve medo de nada. Tinha uma coragem física assombrosa, embora jamais tenha ostentado valentia. Ele simplesmente enfrentava os desafios. A maioria dos políticos de hoje em dia são maricas. Pedro apreciava o combate.
Como típica criança vilaboense, nadou no rio Vermelho, estudou sob Mestra Nhola e cursou o Lyceu. Era bom em francês, idioma que viria a dominar completamente. Graças à generosidade do Marechal Braz Abrantes, grande vulto da história goiana do império e primeiros anos da República, Pedro Ludovico pôde seguir para o Rio de Janeiro para estudar Medicina. Sempre protestou gratidão ao seu patrono.
Com o diploma na mão, o jovem “Doutor Pedro” estabelece sua clínica em Bela Vista. De lá, muda-se para Rio Verde, onde abre consultório. Exerce uma medicina, digamos assim, “social”. Percorre as fazendas a cavalo, atendendo em casa, abrindo mão de honorários em favor dos pobres. Casa-se com Gercina Borges, filha de rico fazendeiro local, chefe político caiadista. Pedro não tem a menor simpatia pelo caiadismo, mas, por ora, não se envolve em política.
Antônio Martins Borges, o sogro, era mineiro de Araxá. Chegou a Rio Verde como desbravador do sertão. Foi pioneiro da criação de zebuinos em Goiás. Foi vereador, prefeito e senador. Martins Borges foi aos poucos se afastando do caiadismo. Pedro inicia então militância francamente oposicionista. Funda um jornal, O Social, dedicado à luta política. Ele e seu sogro começam a sofrer perseguições mesquinhas.
Mesmo em Rio Verde a voz do tenentismo se fez ouvir. A Coluna Prestes andou passando ali por perto, causando viva impressão nos moradores da região sudoeste. Um dos oficiais da Coluna, o major Atnagildo França, iria se fixar no sudoeste goiano, depois de dissolvida a Coluna. Foi amigo de toda a vida do jovem Doutor Pedro. Uma poderosa influência política sobre o médico rebelde.
O revolucionário
Em l930, as posições ficam radicalizadas. Pedro Ludovico vai para Minas Gerais, de onde volta, já revolucionário de lenço vermelho no pescoço, no comando de uma tropa voluntária com a missão de tomar Rio Verde. O combate é duríssimo. A tropa sitiante é derrotada e Pedro cai prisioneiro. Levado em cana para a capital, sob custódia do deputado caiadista César da Cunha Bastos, é libertado a poucos quilômetros da capital. Chegara a notícia do triunfo de Getúlio Vargas com a sua revolução liberal. Uma coluna revolucionária já vinha de Minas para depor o governo goiano. Quando chegou, não existia mais governo. Foi nomeada uma junta governativa, composta de Pedro Ludovico, o desembargador Emílio Póvoa, e o juiz Mário Caiado, um dissidente do caiadismo, ovelha negra da família.
Nota interessante sobre César Bastos, o carcereiro de Pedro Ludovico: foi deputado pela UDN, mas não aderiu ao golpe militar de l964. Foi perseguido pelo regime militar. Apesar de rico fazendeiro, descambou para o esquerdismo. Foi um dos fundadores do PT goiano. Deixou sua fortuna, em testamento, para uma fundação cultural que leva seu nome.
A junta governativa logo foi dissolvida. Pedro é nomeado interventor federal. Em 1934, a assembleia estadual constituinte o elege governador. A eleição de Pedro provoca o rompimento de Domingos Velasco com o governo estadual e com Getúlio. Em l937, instituído o Estado Novo, Pedro perde o cargo de governador, sendo, porém, nomeado, mais uma vez, interventor federal em Goiás, agora mais poderoso ainda. Foi o único chefe de governo estadual que subiu com Getúlio e com ele caiu. Foram 16 anos de mando discricionário.
O “Doutor Pedro” era uma singular figura humana. Coerente sempre, escravo da palavra empenhada, austero, “brabo” (apud Mauro Borges), não recuava diante das dificuldades. Se me permitem um lugar comum irritante, diria que Pedro era um “verdadeiro varão de Plutarco”. O caso da rusga com os deputados oposicionistas, em plena vigência do estado de direito, é bem reveladora do caráter do homem, de sua “areté”. Foi um ato de truculência? Foi, é claro. Mas foi desta ação escandalosamente antidemocrática, e apenas dela, que resultou a transferência da capital para Goiânia. Ali a nobreza dos fins justificaram a torpeza dos meios. Meios necessários. Mesmo porque também eram torpes, caprichosas, as manobras de uma oposição destituída de espírito público para frustrar um empreendimento que, já então, consumira boa parte dos recursos do Estado. Em entrevista a Hélio Rocha, de O Popular, Pedro Ludovico justificou com uma frase lapidar o seu comportamento tirânico em face dos deputados sabotadores: “A História não perdoa os fracos”.
Quando a memória de um homem é venerada unanimemente, sendo sua figura modelo de virtude e fonte de inspiração para todos, isto significa que a História o absolveu. Tivesse ele se deixado paralisar por escrúpulos legalistas, seu nome estaria soterrado pela poeira dos tempos.
O homem brabo Pedro Ludovico era, contudo, segundo os que com ele conviveram, afável, apesar de casmurro. Gostava de sair do Palácio das Esmeraldas à tarde, metido no seu indefectível terno de linho branco, sapatos bicolores, estilo oxford, chapéu marrom de baeta protegendo a calva acentuada. Ia chupar picolé à porta do Grande Hotel e ver filmes de faroeste no Cine Casablanca. Fazia questão de pagar. Adorava dançar nos bailes do Jockey Clube de Goiânia e bebia uísque. Seu predileto era o White Horse.
A justiça de Pedro
Um homem justo, à sua maneira justo. Os que mataram o jornalista panfletário Harolo Gurgel eram ludoviquistas. E o ludoviquismo era um sistema de poder truculento. Os estudantes rebeldes queriam linchá-los. Os criminosos buscaram asilo no Palácio das Esmeraldas. Ouvi do saudoso político udenista Francisco de Brito, que foi testemunha ocular do acontecido, que Pedro Ludovico saiu de revólver em punho à entrada do Palácio para enfrentar a turba. Ameaçou atirar no primeiro que pisasse a escadaria. A turba dissipou. Em seguida, ligou para a polícia, para que viesse buscar os assassinos. Estes foram julgados, condenados e recolhidos à prisão, de onde saíram apenas depois de cumprida a pena.
Em agosto de 1952, Pedro Ludovico sofreu o mais rude golpe de toda sua vida. Seu filho Antônio Borges Teixeira morre em desatre de avião. Tinha apenas 20 anos de idade. Pedro, que estava no Rio de Janeiro para exames médicos, larga tudo e vem velar o filho. Uma foto da época, publicada por Hélio Rocha em seu livro Tu és Pedro, dá bem a dimensão do sofrimento do pai. O homem que parecia feito de aço aparece claudicante na volta do enterro, sendo amparado por Solon de Almeida e Jonas Duarte. Seu rosto é uma máscara de dor excruciante.
Pedro não podia sequer contar com o consolo da religião. Num certo sentido, era ateu. Formou sua concepção de mundo lendo Baruch Spinoza, o fisósofo do panteísmo. Segundo esta doutrina, Deus e Natureza são idênticos. Deus está em cada pedra, em cada folha, em cada bicho. Deus é imananência pura. Se não temos um Deus transcendente, imóvel, “primeiro motor”, segundo Aristóteles, nenhuma religião é possível. Os que acusaram Spinoza de ateísmo não estavam de todo errados. Mas Pedro não perdia tempo com tais questões. Pragmático, vivia bem com padres e bispos, engrenagens da máquina de poder político. De resto, seu panteísmo nunca afetou seu casamento com Gercina, católica fervorosa.
Luto fechado
Os que conviviam de perto com ele contam que Pedro tornou-se anda mais fechado, ainda mais seco por dentro, depois da morte do filho. Ele, que nunca foi alegre, parecia muito mais triste. Aguentou firme. Fez de seu filho Mauro Borges, coronel do Exército, governador de Goiás. Mauro foi eleito pela máquina ludoviquista do PSD, mas não era pessedista. Fez governo nacionalista, desenvolvimentista, modernizante. Atraiu para si a ira dos reacionários goianos, que viam nas suas ações modernizadoras a pré-estreia do comunismo em Goiás. Mauro queria sovietizar o Estado, diziam. A UDN conspirou dia e noite até derrubá-lo, naquilo que foi uma das mais ignóbeis ações políticas já vistas em Goiás, mancha indelével em nossa história, vergonha para todos os goianos.
Pedro quis resistir à deposição de Mauro. Mas o governador deposto preferiu evitar o “derramamento de sangue”. Uma derrota puxa outra. Pedro Ludovico impôs autoritariamente ao PSD seu candidato ao governo do Estado em l966. O partido queria Gerson Castro Costa. Pedro forçou o nome de Peixoto da Silveira. Otávio Lage, da UDN, acabou eleito com votos de pessedistas descontentes. Na sequência, Pedro Ludovico teria o seu mandato de senador cassado. Um conhecido meu, das antigas, que presenciou a convenção pessedista, me contou que Gerson fez um discurso patético, protestando contra o mandonismo de Pedro Ludovico. O Doutor Pedro, que presidia a convenção, limitou-se a determinar ao secretário, burocraticamente, que fizesse consignar em ata a irresignação do orador. Pena ter desaparecido o livro de Atas.
O crepúsculo do gigante
Banido da vida pública, Pedro Ludovico viu o seu partido se transformar em MDB, e o viu ser dominado por uma nova geração de líderes, um dos quais Iris Rezende Machado, de quem não gostava. Dona Gercina se foi, deixando Pedro imerso em total solidão. Quando da anistia, deu declarações públicas repudiando-a. Dizia não aceitar perdão por falta qua não cometera. Anistia é ato unilateral e faz efeito independentemente da vontade do anistiado.
No dia 16 de agosto de l979, no mesmo mês que fora promulgada a Lei da Anistia, Pedro Ludovico falaceu em sua casa da Rua 29, hoje transformada em museu. Foi velado no saguão da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás e sepultado, ao som de “La cumparsita”, no Cemitário Santana.
Durante o velório, um velho alquebrado, claudicante, apoiando-se precariamente em uma bengada, aproximou-se do caixão. Banhado em lágrimas, após beijar a testa do defunto, declarou, tomado de emoção: “Eu combati este gigante”. Era o ex-deputado federal Wilmar Guimarães.
Combateu mesmo. Wilmar fazia parte de um pequeno grupo de udenistas que enfrentaram à bala o ludoviquismo. A disputa política daquele tempo era violenta. Não haviam adversários, apenas inimigos. Matava-se e morria-se por paixão partidária. Pedro sofreu atentado, escapando ileso. Neste atentado, porém, perdeu a vida do militar Getulino Artiaga, que estava no palanque.
Se Wilmar servia-se de seus revólveres para enfrentar o ludoviqusimo, o entrentamento ideológico contra Pedro ficava a cargo de Alfredo Nasser. Ele foi um dos mais brilhantes políticos de Goiás. Intelectual de vasta erudição, solteirão e boêmio, pobretão e anginoso, tinha como arma de luta a palavra escrita. Seus artigos, de saboroso estilo entre o irônico e o indignado, eram irrespondíveis – ou quase. Ele foi a alma da oposição ao mandonismo pessedista desde a redemocratização de 1945 até a derrocada de Mauro Borges, em l964. Deputado, senador, ministro, jornalista, foi o oponente à altura. Sua morte, em l966, o privou do desgosto de ver os descaminhos da Revolução de l964, pela qual lutara, mas que foi, como amargamente Wilmar Guimarães contastou, a negação de tudo quanto pregam os opositores idealistas de Pedro Ludovico.
Pedro Ludovico é, hoje, nome de praças, ruas, avenidas, edifícios e outras coisas mais. Foi retratado em bronze, montado a cavalo, num monumento erigido na Praça Cívica, cujo nome oficial, claro, é Praça Pedro Ludovico Teixeira. Além de Goiânia, Pedro fez também a Usina Hidroelétrica de Cachoeira Dourada, concluída durante o primeiro governo de Iris Rezende Machado.
Coda
Acusaram Pedro Ludovico de muitas coisas. Mas nem seus mais ferozes inimigos ousaram dizer que tenha sido corrupto, que tenha se enriquecido ilicitamente, que tenha favorecido apaniguados. Quando morreu possuia um único imóvel, a casa da Rua 29. Tinha uma velha caminhoneta C-14. Sustentou-se, nos últimos anos, dos rendimentos da fazendinha de gado em Rio Verde, que dona Gercina recebera de herança do pai. Não é força de expressão dizer que morreu pobre. Para ser mais exato, nunca foi rico.