Suplicy: a reserva moral
Diário da Manhã
Publicado em 12 de outubro de 2016 às 02:55 | Atualizado há 9 anosTodos os jornais publicaram e deu na televisão. Um senhor já idoso, muito calvo, sendo carregado por policiais militares, que o levaram em cana a uma delegacia de polícia. Cena patética. Lá, depois de uma detenção de duas horas, foi solto pelo delegado. Nem se lavrou auto de prisão em flagrante. O preso foi tratado como “corró”, gíria policial para “detento correcional”, essas pessoas que são detidas apenas por perturbar a paz das ruas. Os engraçadinhos e os inconvenientes cujo comportamento não chega a ser grave o bastante para justificar uma ação penal. Depois de passada a carraspana, manda-se o elemento embora.
O senhor em questão, o corró que todo o País viu protagonizar a cena patética, foi eleito vereador na semana passada em São Paulo. Eleito com a maior votação de todos os tempos, tanto em termos absolutos como proporcionais. Eduardo Suplicy obteve mais de 301 mil votos, o equivalente a mais de 5% do eleitorado, num universo em que quase dois mil candidatos disputaram as 51 cadeiras da Câmara Municipal de São Paulo.
Mesmo para as dimensões megaescalares de São Paulo, a votação de Suplicy foi de deputado federal. Muita gente, nas redes sociais, este lugar onde quem não tem o que fazer fica conversando fiado, acusa Suplicy de ter provocado a sua detenção apenas para ganhar votos. Ele queria aparecer, dizem. Mas quem acompanha a carreira de Eduardo sabe que ele não precisa disso para se projetar. Ele foi deputado federal e depois senador por 24 anos. É uma das figuras políticas mais conhecidas da capital paulista. Quem, em São Paulo, não sabe quem é Eduardo Suplicy, o pai do Supla, o ex-marido da Marta?
Eduardo vinha ocupando um cargo de pouco relevo na administração Haddad. Deixou-o para concorrer a uma cadeira de vereador. Mesmo apoiando a candidatura de Haddad à reeleição, Suplicy resolveu protestar contra uma ação da prefeitura. O município ganhou uma liminar para desalojar os tais “sem teto” de um edifício público. O ex-senador compareceu ao local para solidarizar-se com os que seriam desalojados pela polícia. Não tendo meios legais para impedir a violência institucional, resolveu obstruir o caminho dos policiais. Deitou-se no chão e disse que dali não saía. Não saindo por bem, saiu por mal, carregado rumo ao xilindró.
O episódio causou espécie em São Paulo, inclusive nos meios esquerdistas. Sair em passeata, gritando palavras de ordem e slogans bobocas do tipo “o povo unido jamais será vencido”, é coisa dentro dos padrões. Deitar-se no chão para obstruir o cumprimento de uma ordem judicial beira o insólito.
Mas quem disse que Suplicy não é insólito? É o mais insólito político brasileiro. Ele é o extremo oposto do estereótipo do homem público comum. O estereotipado é cínico, venal, maricas, indiferente aos dramas humanos, incapaz de se indignar diante de uma injustiça, destituído de caráter.
Suplicy é tão certinho que foi, talvez, o único medalhão fundador do PT a escapar ileso à onda de perseguição policial-midiática desencadeada contra os petistas. Nem Lula escapou. Não há nada que desabone a conduta moral de Eduardo. Não adianta tentar envolvê-lo em algum escândalo de corrupção. Não pega. Ele nunca foi citado por algum delator premiado. Não é que Eduardo faça ostentação de probidade, como tantos fariseus que andam por aí. Ele apenas é probo. Simple as that.
A questão não é se Lula é mesmo dono do tal triplex e do tal sítio. Não há provas de que seja. Aliás, nunca apareceu uma certidão do registro imobiliário indicando-o como feliz proprietário dos referidos imóveis. Mas a imaginação criativa das autoridades brasileiras está revolucionando o Direito Civil em todo mundo. Presume-se, com base em indícios remotos, que Lula é proprietário de dois imóveis dos quais não possui sequer contrato de compromisso de compra e venda, e, com base nisso, se prova que ele praticou crimes contra a Fazenda Federal, ocultação de patrimônio. Portanto, não importa se ele é ou não é o dono. O importante é que isso deu base a um escândalo fenomenal. Boatos ou acusações infundadas são fatos políticos relevantes e influem no ânimo do eleitor. Políticos do PT deveriam fazer voto de pobreza e viver asceticamente, como os monges franciscanos da idade média. Ou como os budistas, que mendigam comida na vizinhança.
Lula, Zé Dirceu, Vaccari, João Cunha, Genoíno, Palocci, Mantega… todos os cardeais do PT paulista foram envolvidos em escândalos cabeludos. Provas? Para que provas, se os acusadores possuem, como disse o Dalagnol, “convicções”? E até que os réus venham, algum dia, provar que são inocentes, se forem inocentes, claro, invertendo-se contra eles o ônus da prova, outras eleições terão se passado e o PT empurrado para o gueto político, habitando, talvez, uma sórdida edícula no mais longínquo subúrbio do gueto. Enquanto a nomenclatura petista geme no subsolo do fundo do poço, Suplicy continua imaculado como uma flor de lótus, que viceja nos pântanos, mas em cujas pétalas brancas a lama não se fixa.
Lula não será candidato. Se for candidato, não deve ser eleito. Se eleito, não poderá tomar posse. Se empossado, não governará. Se insistir em governar, terá que ser deposto. Era o que Lacerda dizia de Juscelino. Eis o espírito dos dias que correm. Lula não pode ser candidato. Se a inelegibilidade não o alcançar daqui a dois anos, a impopularidade alimentada pela imprensa paulista deverá barrar o caminho dele à presidência da República.
Não quer isso dizer que o PT não tenha um candidato presidencial se Lula for barrado. Com o resultado das eleições de domingo último, Suplicy tornou-se presidenciável, quer ele queira quer não. É a reserva moral do PT. Na pior das hipóteses, será o nome forte do partido para tentar desalojar do governo de São Paulo os tucanos que lá estão há décadas.
Berço de ouro
Em 24 anos de Senado, Suplicy nunca usou o carro oficial. Ia e voltava em seu próprio automóvel. Durante os 14 anos de governo petista, não indicou sequer um contínuo para ocupar cargo governamental. Sempre custaram do seu bolso, e de doações da militância, suas campanhas eleitorais. Não possui participação em empresas, não opera em bolsas de valores, não possui fazendas, não faz lobbies para empreiteira. Nunca precisou. Todas suas emendas ao orçamento destinavam-se a hospitais públicos e de caridade.
Corrupção é um troço tão vulgar, tão plebeu! Eduardo Matarazzo Suplicy nasceu em berço de ouro. Nunca passou privações. Descende de ingleses, pelo lado paterno. O pai dele, Paulo Cochrane Suplicy, era corretor de café em Santos, dono de uma “Casa Comissária”. A mãe dele, dona Filomena, era filha de Francesco Matarazzo. Ele, portanto, possui três nacionalidades.: é brasileiro, inglês e italiano. Torce fanaticamente pelo Santos Futebol Clube. Deveria ser palmeirense. Mas Suplicy é totalmente fora do esquadro.
Conforme explicam Celso Furtado e Caio Prado Júnior, em suas obras sobre a formação econômica do Brasil, o esquema era basicamente o seguinte: a aristocracia luso-descendente da casa grande explorava a monocultura; os ingleses, depois que Dom João VI abriu os portos, controlavam o negócio de exportação e importação, pois é indigno de um fidalgo se envolver em operações comerciais. Pós-abolição, o escravo negro foi substituído pelos imigrantes, em grande parte italiana, alemã e japonesa. Foram esses imigrantes que iniciaram as atividades industriais no Brasil, constituindo uma burguesia que produzia essencialmente para o mercado interno de consumo.
O avô de Eduardo já foi um dos homens mais ricos do Brasil. Francesco Matarazzo chegou a São Paulo como qualquer imigrante italiano. Mas preferiu o comércio à lavoura. Fez-se mascate, vendendo bugigangas de porta em porta. Prosperou, abriu uma fabriqueta de banha de porco, embrião das poderosas Indústrias Reunidas Francesco Matarazzo.
Podre de rico, pai de treze filhos, tornou-se sogro de nobres italianos falidos, caçadores de dotes. As filhas e os genros, na Itália, começaram a fazer lobby para que o rei Vitório Emanuel III concedesse um título de nobreza ao industrial brasileiro. O rei relutava em nobilitar o plebeu ítalo-brasileiro. Mas aí veio a Primeira Guerra Mundial. Francesco doou milhões de dólares ao trono italiano para ajudar no esforço de guerra. O rei concedeu-lhe, então, o título de Conde, ao qual não correspondia nenhum condado. Tudo bem, o importante mesmo são os privilégios da nobreza. O velho carcamano chegou a possuir mais de 300 fábricas no Estado de São Paulo, além de navios, trens etc. Seus netos, incluindo Eduardo, são donos de imóveis espalhados por todo o Estado. Vivem de rendas, como todo nobre que se preza.
Lei Suplicy
Eduardo Matarazzo Suplicy nasceu em São Paulo a 21 de junho de 1941. É formado em Administração de Empresas pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, onde atualmente é professor titular, e em Economia, pela Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos. Em 2 de fevereiro deste ano, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Université Catholique de Louvain.
Em 1978, Eduardo Suplicy foi eleito deputado estadual pelo antigo MDB, ala autêntica. Em 1982, elegeu-se deputado federal pelo então recém-criado PT, do qual foi um dos fundadores. Candidatou-se a prefeito de São Paulo em 1985 (perdeu para Jânio Quadros) e em 1992 (vencido por Paulo Maluf) e a governador em 1986 (superado por Orestes Quércia). Foi o mais votado vereador de São Paulo nas eleições de 1988, tendo cinco vezes mais votos do que o segundo vereador mais votado, e ocupando o cargo de presidente da Câmara Municipal no biênio 1989-1990. Agora, repetiu a façanha, se superando.
Suplicy chegou ao Senado Federal por São Paulo em 1991, completando, em 2014, vinte e três anos de legislatura. Já no início de seu primeiro mandato, propôs um programa de transferência de renda, conhecido como renda básica de cidadania, o qual garantiria a todos os cidadãos do país o direito a uma renda igualitária e incondicional. Esta renda teria como objetivo garantir as necessidades básicas de todos os cidadãos. O projeto era sistematicamente rejeitado. No ano seguinte, ele reapresentava o projeto. Aprovado finalmente em 2004, foi sancionado como Lei 10.835, que instituiu a Renda Mínima. Em seu livro “Renda de Cidadania – A saída é pela porta”, Suplicy relata sua trajetória política no PT e demonstra como a Renda Básica de Cidadania apresenta vantagens diante de todos os programas de transferência de renda. A lei precisa ainda ser regulamentada.
Em 2002, disputou as prévias internas do PT para ser o candidato do partido à Presidência da República, perdendo por mais de 80% para Luiz Inácio Lula da Silva. Desde as primeiras eleições diretas, esta foi a primeira vez que Lula precisou disputar prévias para sair candidato pela legenda.
Em 2003, quando um grupo de deputados federais e senadores do PT (a maioria fundadores do partido), liderados pela senadora de Alagoas Heloísa Helena, foi expulso do partido, por ser contrário aos caminhos por ele tomados, Suplicy foi um dos seus poucos filiados notórios que defendeu publicamente os dissidentes, o que provocou a ira de outros dirigentes do PT, como José Dirceu. Chegou a ser ameaçado de não poder mais ser candidato ao Senado. Este grupo de dissidentes viria mais tarde fundar o Partido Socialismo e Liberdade (PSol). Quanto a Suplicy, preferiu ficar no PT e acabou perdendo a eleição de senador em 2014 para José Serra, do PSDB.
Em 2005, quando foi passado um abaixo-assinado no Senado para a formação de uma CPI que acabaria por desvendar esquemas de corrupção presentes no governo Lula, Suplicy chegou a chorar. Mas assinou. Em 2009, diante da crise que assolou o Senado, com o arquivamento das onze denúncias contra José Sarney, o senador Eduardo Suplicy – depois de receber centenas de e-mails de seus eleitores pedindo uma atitude – chegou a pedir explicação do presidente da casa em plenário e, mostrando a ele um cartão vermelho simbólico, pediu sua expulsão.
Amores e desamores
Eduardo Suplicy casou-se em l964 com Marta Smith Vasconcellos, com quem teve três filhos, dois rapazes e uma moça. O mais velho deles é o notório Supla, roqueiro punk, figura exótica das ruas paulistanas. Péssimo cantor, mas boa praça.
Marta descende do Barão de Vasconcellos, assim mesmo, com ele dobrado. Ou seja, pertence à aristocracia cafeeira, às famílias quatrocentos. O casamento dela com Suplicy foi a união da burguesia industrial com a aristocracia rural. Ela é psicóloga e psicanalista. Foi apresentadora de TV, onde discutia sexualidade. Foi deputada, prefeita de São Paulo e agora é senadora, pelo PMDB.
Durante seu mandato de prefeita, Marta iniciou um romance com certo Luiz Favre, militante de uma organização trotskista. Quando o adultério veio a público, Marta pediu o divórcio. Casou-se em seguida com Favre, de quem já se divorciou. Contraiu novas núpcias com um magnata paulista.
Eduardo Suplicy suportou com altivez e dignidade a traição de Marta. Comportou-se, civilizadamente, quase igual ao Nacib, de Gabriela Cravo e Canela. Com a diferença de que se absteve de dar uns sopapos no irresistível sedutor de mulher casada. Seria até covardia bater no Favre. Suplicy, além de grandalhão, continua atleta, corre todos os dias para manter a forma. Foi boxeador por vários anos, tendo vencido campeonatos.
De um modo geral, a opinião pública ficou do lado dele. Teve, inclusive, a solidariedade dos filhos, que condenaram a atitude da mãe. Eduardo sofreu o diabo, é claro, porque amava Marta. Superou, tocou adiante, casou de novo. Está em paz com a vida.
Dizem as más línguas que Suplicy também não era santo. Ele teria tido um romance com Joan Baez, a diva do folk americano. O fato é que Suplicy sabe de cor e salteado as letras de “Blowing in the Wind”, de Bob Dylan, que virou hit na voz de Joan. Uma vez ele cantarolou a canção na tribuna do Senado, à capela. Péssimo cantor.
Professor universitário, Eduardo Suplicy é amante das artes e tem muitos amigos nos meios artísticos. O “Papito” dá a maior força aos filhos músicos. E foi para ficar em contato com o universo deles, explicou recentemente, que resolveu tomar aulas de piano aos 65 anos de idade. Hoje em dia, dizem, ele é um razoável pianista. Até já deu uns concertinhos por aí.
Daqui a dois anos teremos eleições presidenciais. O PT está acuado. Lula está cercado por todos os lados. Se não puder ser candidato, o PT terá que mandar Suplicy para o aquecimento. Pode ser também que ele saia candidato ao governo de São Paulo. São várias as possibilidades. Ou será que Suplicy continuará na reserva?