Conheça a história do gelo-baiano, bloco de concreto criado para ‘disciplinar’ o trânsito
Diário da Manhã
Publicado em 26 de maio de 2020 às 08:01 | Atualizado há 5 anosRIO – Cocoruto. Picolé. Caixãozinho. São vários os apelidos para o bloco de concreto utilizado para orientar o tráfego. Mas o que pegou mesmo no Rio foi gelo-baiano. A expressão da década de 1960, devidamente dicionarizada, mistura metáfora e preconceito: “gelo” porque lembra a forma, espichada; “baiano” porque “é tão preguiçoso que nem derreter derrete”, diz a ignorância popular.
Deonísio da Silva, autor do livro “De onde vêm as palavras”, vai além.
— O baiano é vítima de um conceito que o tem como inerte para o trabalho, não gosta de se mexer para nada — diz. — Negativo é, mas é carinhoso, doce, uma brincadeira.
O gelo-baiano recebe este nome até na Bahia. Na linha de produção da Hiper Premoldados, com sede em Salvador, trata-se do item número 9, entre “fossa séptica” (8) e “grelha para sarjeta” (10). Sai por R$ 38 cada, mais frete.
— Não sei de onde vem este nome, mas a gente chama de gelo-baiano mesmo — diz Lafaiete Rocha, gerente de vendas da Hiper Premoldados.
A empresa soteropolitana produz o item no formato clássico: 50cm de comprimento, 25cm de altura, 30cm de largura na base e 20cm no topo. É basicamente o modelo dos prismas trapezoidais (eis o termo geometricamente correto) que, ainda sem apelido consagrado, congelaram o trânsito carioca em meados de 1964. Posicionados em pontos-chave da cidade, bloqueando o fluxo e eventualmente atingidos por veículos, eles vinham para disciplinar as ruas da Guanabara.
Os gelos-baianos eram a base do choque (térmico?) de ordem do coronel-aviador Américo Fontenelle, diretor do Detran (na época, o órgão acumulava funções da CET Rio). Com total confiança do então governador Carlos Lacerda, Fontenelle tinha corte escovinha, olhar perfurante e uma autoestima inabalável: chamava seu trabalho de “revolução moralizadora”. Sua administração se caracterizava pela tolerância zero: fiscais guinchavam e até furavam veículos infratores. Rendeu até marchinha no carnaval de 1965: “Nego não pia / Nego não pia / Todo mundo enche / Fontenelle esvazia.”
Apesar da truculência, havia ciência no método do coronel. Sua equipe de engenheiros era celebrada pela imprensa, e tinha inclusive um autorama para simular alterações no tráfego. Apesar (ou por causa) dos acidentes, e pneus furados, o trânsito no Rio melhorou. Fontenelle ficou famoso, criou planos para Belém e São Luís e foi convocado para “solucionar” o trânsito de São Paulo.
O prisma de concreto logo ganharia alcunha oficial. Em 31 de janeiro de 1968, o GLOBO alertava que na Avenida Atlântica com a Rua Souza Lima, em Copacabana, havia veículos se chocando com “15 blocos de concreto pintados de branco e que popularmente são chamados de ‘gelo baiano’” (na época, grafado sem hífen). Era a primeira vez que a expressão surgia no jornal. Em 1969, já era manchete, deslocado pelos “motoristas apressados”. O prefeito Marcos Tamoyo quebrou o gelo em 1976: “Tenho horror a gelo baiano”, disse, e mandou recolher boa parte deles. Foram deixados somente em pontos essenciais ou substituídos por obstáculos mais modernos, como cones plásticos e olhos-de-gato.
Hoje, os prismas se integraram ao cenário do Rio e de outras grandes cidades brasileiras. É o que arquitetos e urbanistas chamam de “paisagem invisível”: de tanto vê-la, não a percebemos. A exceção recente foi Recife: em 2011, a prefeitura encheu a cidade de blocos amarelos, criticados, movidos e, finalmente, retirados. Não havia um Fontenelle para bancar a revolução.
E por falar no coronel: em 1967, ele se tornou o responsável pelo trânsito de São Paulo. Com uma série de medidas simultâneas e impopulares, foi acusado de trazer o caos e chamado de Coronel Fon-Fon. Durou 58 dias no cargo, sendo exonerado em 6 de abril. Em 9 de julho, foi chamado a se defender na popular “Roleta Russa” da TV Paulista. Quase ao final do programa, levou a mão esquerda à testa, deu dois passos para a esquerda, dobrou as pernas e foi ao chão. Morreu ao vivo, aos 46 anos, de infarto fulminante.