O país governado pelo estado paralelo
Redação DM
Publicado em 7 de outubro de 2016 às 02:17 | Atualizado há 5 meses- Desprezo dos governos com sistema prisional, que trata detentos de forma indigna, gerou seu maior adversário: Primeiro Comando do Crime surge ao massacre de 111 no Carandiru, em São Paulo
A Justiça é categorizada como um poder. A partir dela o Estado se revela. É, portanto, um instrumento típico da função estatal. Feita por magistrados togados, cuja diferença básica é procurar analisar os conflitos sociais por meio da imparcialidade e regras de Direito. De alguns anos para cá, supõe parte significativa das autoridades policiais e pesquisadores de segurança pública, surgiu uma nova justiça e um “estado” paralelo: o PCC – o Primeiro Comando da Capital.
Com ramificações que se enraízam em todo País, o PCC realiza julgamentos, pratica crimes e interfere na realidade dos estados – seja em suas políticas administrativas seja por meio de atividades que controlam a sociedade.
Um dos exemplos intriga os estudiosos de violência: ao agir contra criminosos, o PCC teria reduzido as taxas de criminalidade de São Paulo. Enquanto estados como Goiás apresentam ao longo da última década uma gigante escalada de homicídios, São Paulo simplesmente caiu para a rabeira da lista.
E um dos motivos, assumidos pelo próprio Marcos Wilians Herbas Camacho, o Marcola, considerado líder do PCC, seria as ações do PCC que colocam “ordem” no crime.
O DM consultou processos, inquéritos e relatórios da Comissão Parlamentar de Inquérito do Narcotráfico, Tráfico de Armas e do Sistema Carcerário para revelar que ignorar o sistema carcerário talvez tenha sido um dos erros mais graves do Estado brasileiro.
Para a doutora em sociologia da violência pela USP Camila Caldeira Nunes Dias, o PCC cria uma nova figura social a partir da hegemonia que institui. É o PCC que implanta o controle social nos presídios e que adquire a forma de “imposição de autocontrole individual” de fora. Ou seja, quem reduz a taxa de violência não é o Estado com sua “dancinha” estatística, mas os próprios criminosos, que realmente controlam as cidades.
CARANDIRU
A estrutura do PCC surge a partir de um momento histórico do país: o massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992. Na última semana, uma decisão polêmica colocou ainda mais lenha nesta fogueira: o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) simplesmente derrubou a sentença que condenava 74 policiais pelo massacre que tirou a vida de 111 presidiários – 84 dos quais ainda considerados inocentes à luz da Constituição Federal, já que eram presos sem condenação definitiva ou transitada em julgado.
Era mais um sinal atabalhoado aos detentos, de que as mortes dos detentos ocorreu em vão e ficará sem efetiva punição.
PCC está em Goiás e no resto do País
As investigações da Polícia Civil de São Paulo levam a crer que o PCC está infiltrado em diversos estados brasileiros, onde movimentam um grupo de pessoas que chega a 550 mil pessoas que colaboram com a instituição. A maioria estaria ligada ao movimento por conta do motivo financeiro inicial que motivou o surgimento do comando: o pagamento de mensalidades para ser protegido. Desse grupo, estima-se que 27 mil detentos estejam em São Paulo. Do comando, participariam 10 mil.
O Ministério Público de São Paulo conseguiu mapear R$ 200 milhões em 500 contas bancárias supostamente ligadas ao PCC.
Esse dinheiro serve para tudo: para dar conforto aos parentes soltos, repassara recursos para a instituição corromper juízes, promotores e agentes públicos, fomentar campanhas políticas, enfim, atuar para manter a organização viva e praticante dos artigos apresentados no estatuto atribuído ao PCC.
Por exemplo, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) acredita que tenha prendido uma das lideranças do PCC no território goiano.
De acordo com a corporação, A.L.C, 39 anos, é um dos líderes da facção. Ele foi preso no último dia 14, com uma caminhonete que apresentava placas e chassi adulterados. O suspeito, que estava na BR-364, próximo a Cuiabá, tem passagens por sequestro, tráfico de drogas, roubos de veículos e a novidade da linha de produção do PCC: o “Novo Cangaço”.
Conforme informações da Polícia Civil de São Paulo, a chegada do PCC em Goiás teve início no começo da década. Em 2010, por exemplo, teria ocorrido o batismo de 15 novos adeptos que atuavam em Goiás.
Como nas máfias, o batismo ocorre através de um “padrinho”, que tem o direito de indicar novos integrantes. O padrinho só é considerado como tal se apresentar atestado de que esteja contribuindo há três anos com o PCC. Outra regra é que não seja condenado por crimes que ofendam a dignidade, caso de estupro. Ter assediado a mulher de outro preso é falta grave e impede que seja protegido pela facção. Conforme um relatório da Polícia Civil de São Paulo, existe expressa vedação aos homossexuais.
FRONTEIRAS
O PCC estaria prestes a invadir outros países, acredita a Polícia Civil de São Paulo – para uma parcela dos investigadores já teria invadido. E a prova seria o ataque criminoso ocorrido em Pedro Juan Caballero, quando foi assassinado o empresário Jorge Rafaat Toumani. Ele estava na rua Teniente Herreo no centro da cidade de Pedro Juan Caballero, no Paraguai, distante cerca de 338 quilômetros da Capital, e uma das linhas de investigação seria de que homens ligados ao PCC tentavam entrar no mercado paraguaio.
O Ministério Público informa que não é só nas fronteiras que a organização tem interesse. Já existem negociações do PCC com outros grupos criminosos na África e no Oriente Médio.
A ação existe uma reação
Dispostos a impedir outro massacre semelhante ao ocorrido no Carandiru, os presos idealizaram o PCC. Sua missão maior: reorganizar de dentro do presídio os criminosos de fora e assim instituir um poder de coesão entre eles que possa se comunicar e negociar com o Estado. As palavras da linguagem são “atentados”, “mortes de integrantes do aparato criminoso” e acertos de contas com gestores. A cada ação do poder público considerada ofensiva, eles se prestam a uma reação.
O suposto estatuto do PCC com 18 artigos diz no 13 º os motivos que o fizeram surgir: “Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões”.
Pois este sistema que se organizou dentro dos presídios não perdoa, por exemplo, crimes imprevistos ou não planejados por eles e que afetam diretamente os territórios que em que atuam e controlam. Eis a aqui a origem das quedas de homicídios: o controle dos detentos quanto ao que ocorre de fora.
Um caso que ocorreu em São Paulo em 2015 revela como acontecem os julgamentos da organização. A partir de celulares, por meio de teleconferências, os criminosos decidem a pena dos envolvidos. O tribunal, portanto, é segmentado: territorializado (os acusados, as testemunhas e os agentes que dão ‘segurança’ aos julgamentos) e desterritorializado (o juiz e o conselho de sentença).
No caso, os suspeitos pelo “crime”aqui relatado foram levados a uma chácara onde ficaram de frente para as testemunhas. E dos celulares, as vozes dos julgadores decidiram o futuro dos condenados.
Em 27 de março de 2015, em Pirassununga, o pedreiro Adriano Mendes levava a esposa e uma amiga em uma moto, quando tombou com as mulheres motivado pelo peso do veículo. Três homens que passavam perto zombaram do pedreiro. Ele acabou morto por um dos marginais. O irmão da vítima, segundo consta o processo penal da justiça paulista, teria pedido ao PCC para “julgar” os autores. Os relatórios e juízes deram o veredito em um tribunal paralelo. Todo o julgamento foi gravado pela Polícia Civil. Um detento apelidado de “Mais Velho” é quem comanda o julgamento como presidente do conselho de sentença. Outros sete presos que acompanham o caso em presídios diferentes analisam a história. O caso é registrado por um relator, que dita o que deve ser escrito e arquivado no “acórdão da morte”.
Os celulares interligados ficaram ativos durante a madrugada toda no dia do julgamento. Cinco horas depois, a sessão foi interrompida para todos dormirem. Antes do meio dia, entretanto, retornaram e deram a sentença: pena de morte para o autor dos disparos contra o pedreiro.
O julgamento não tinha a figura do advogado, promotor nem provas colhidas pelo delegado. E os juízes podem decidir diretamente. Um deles entra na defesa de um dos acusados:
-Preso 1: O Fabrício já entrou na linha, irmão, pedindo uma oportunidade, entendeu?
-Preso 2: Se ele já chegou pedindo oportunidade, ele sabe que cometeu um erro grave aí e saiu totalmente fora da ética. E está, sei lá, pedindo uma oportunidade de vida.
-Preso 3: Eu fecho nessa mesma opinião sua aí, cara, porque os ‘moleque’ é novo.
Os detentos juízes avaliam o que fazer: se punem todos, um ou se absolvem os suspeitos. Para isso, dialogam, citam casos, analisam a capacidade de “recuperação” e as reações sociais. Um dos presos sugere que o autor do assassinato seja mantido vivo. Mas é minoria:
-Preso 4: Dá um cambau de louca nele, aquele que manda lá na porta da UTI, entendeu, irmão?
Os presos juízes então pedem para ouvir a mulher do homem que morreu, principal testemunha, e que está na chácara junto com os ‘acusados’:
– Mulher da vítima: O Adriano ‘tava’ montando na moto pra ir embora quando ele chutou o Adriano, na costela dele…
Preso inquiridor: E transpareceu ‘os caras’ tava dando risada?
– Mulher da vítima: Tavam tirando sarro e o cara puxou a arma.
Depois de ouvirem as testemunhas, por fim, os ‘magistrados’ do presídio ligam para o alto comando, o supremo tribunal do PCC, em outro presídio, e escutam as orientações de execução da sentença:
– Preso do alto comando: os outros ficam, mas o menino que tirou a vida do Adriano, ele não volta mais não.
Os presos então comunicam aos familiares dos dois jovens que não serão assassinados. E afirmam: “Se acontecer qualquer tipo de situação com a família do Adriano, que faleceu, que tenha dedos ‘seus’ envolvido, nóis vai cobrar radicalmente pra cima de vocês”.
É com esta lei que age o PCC, informam milhares de páginas que tratam do nascimento da corporação hoje comparada ao cartel de Medelin, unidade gigantesca criada por Pablo Escobar na Colômbia e que gerava uma riqueza maior do que a acumulada pela General Motors, por exemplo.
O PCC não chega a tanto. Mas quase. Reportagem da revista “Veja” desta semana sugere que ele esteja à frente da JBS Foods e da Volkswagen em geração de bilhões de reais. Pelas contas da revista, o PCC é a 16 º empresa nacional, com R$ 20,3 bilhões de faturamento, colada na Ambev, Fiat e Pão de Açúcar.