O cidadão
Redação DM
Publicado em 1 de outubro de 2016 às 02:43 | Atualizado há 7 mesesE começa tudo de novo. O ideário cívico me diz para inteirar-me das coisas públicas e seguir reto a linha da lei, “que somos todos cidadãos, ora essa”, “que cada um faz sua parte e partilhamos todos o logro”. Quem isso disse de certo não tem patrão. Aguardem, deixa-me subir ao ônibus. À merda, lotado de novo. Quem disse isso de certo não anda de ônibus. Sou igual ao meu patrão, está lá escrito na tal da lei. Somos dois cidadãos, cada qual seu voto, todos iguais perante deus e o juiz. Vi na tv enquanto almoçava, chamam “igualdade jurídica”. Quem escreveu isso não almoça onde eu almoço.
Maldito ônibus, de lotado perdi o ponto. Esperem que vou descer. Dois pontos adiante. Caminho, vou chegar atrasado. Na lei estamos os dois de pé, aqui estou de joelhos. O patrão me aporrinha “estás atrasado, fulano”. Maldito, nunca me pagou as quantas horas extras que já me fez labutar, “é coisa atoa, fulano, vão só uns dez minutinhos e metes à bolsa as coisas e vais embora. Boas noites, não te esqueces de chavear a porta, duas voltas ao ferrolho”. Quem fala de “dez minutinhos” não produz o que eu produzo, mas é dono das coisas que faço. É dono do meu tempo, dono dos meus braços, proprietário dos meus músculos, “faça-se por eles a vontade do empregador”. E assim multiplico o pão que não como.
Agora outro dia veio-me trocar o crachá. “São agora outros tempos, fulano, a palavra ‘empregado’ é doutras épocas, veja, não estamos mais no século passado, tomas cá este novo, mais bonito e atual”. Agora sou “colaborador fulano”. Quem inventa destas coisas não tem o patrão que eu tenho. Agora colaboro com o patrão, sou como um “sócio da firma” ele me diz. Meu patrão não dorme na cama da marca que eu durmo. Sou o sócio que não partilha do logro da firma.
Abriu teatro novo à cidade, uma fortuna os tais ingressos. Na boleia do ônibus vai-se metade do dia até o lugar. Moro longe do cartão-postal da cidade. Chego lá e me diz um segurança, curioso que creio já ter tombado com ele umas quantas vezes no boteco perto de casa, “vestido assim não entras”. Que de errado há com minhas roupas? pergunto, ele responde “de shorts não pode”. No calor infernal desta cidade, a chacoalhar horas na boleia, me querem num traje de gala, “indumentária adequada” foi o termo que ele me falou. Quem inventa estas coisas não anda no transporte que eu ando.
E nem ando mais, pois que agora resolveram que nos fins de semana não vai mais ônibus ao centro. Pobre se desloca a colocar-se sob o açoite da chibata, fim de semana tem que estar em casa, descansando. Ficar à rua é coisa de gente atoa, de má índole. Onde já se viu, pobre sair fim de semana, nem rico é pra ter desses regalos todos. Quem inventa estas coisas não precisa pegar ônibus para ir ao teatro.
E somos todos iguais. No respeito pela pátria e pelo chão, “viva brasil, viva estado”. Eu e o patrão, juntos, sob a ética prescrita na lei e pelo prato que se enche pelo fruto do nosso conjunto suor. A minha testa é mais suada que a dele. O meu suor enche o prato dele. Eu não como no prato que ele come. Meu trabalho enche o prato dele, meu e dos meus antepassados. Os talheres que ele usa, a panela que lhe cozinha a carne, a mesa que lhe sustenta a louça e as travessas. Tudo fruto do trabalho de gerações, que remontam meus mais antigos predecessores. Avós, pais, tios… nunca houve testamento. Nós nada temos a deixar aos nossos sucessores, pois que está tudo na casa dele. A família só herda a posição.
Foi numa dessas que perdi a “sociedade” na empresa. Disseram que era “desajuste” com as novas “políticas produtivas da empresa”. Por curioso à época estava eu a falar alguma coisa sobre a lei nos dar “direito de greve”. Parece que se a greve é direito, falar dela não é. Quem demite o funcionário honesto nunca precisou fazer greve para melhor por o pão à mesa.
“Que vamos fazer, fulano” pergunta a esposa aflita. O emprego dela não dava para o sustento da casa, o meu só tampouco. As contas apertadas precisavam das duas finanças. “Vejamos, vejamos, vou em busca, diz-se na tv que anda a sobrar emprego.” Devo ser muito mal procurador, pois que essa sobra nunca encontrei. A paciência do dono do armazém se esgotava, e cortou-nos já o fiado. O pobre diabo nem tem culpa, também tem de por comida na própria casa. “Fiado não mais, fulano.” Os que me negam emprego, depois de ligar à firma passada para saber de meus feitos pregressos, não precisam pedir fiado no armazém.
Na letra, o cidadão é um com a pátria e com os seus, “um por todos e todos por um”. No dia é cada qual com o seu e não me olhe muito, que lhe meto um tabefe. Pensei pedir esmola na rua, não foi para tanto. Um vizinho me arranjou um bico, a carregar fardos no seu caminhão de frete. Pagava-me mal, “para te ajudar, vizinho fulano”. Antes algo que nenhum.
Soltaram ontem no rádio que vão subir a idade da aposentadoria. Já estava às portas com a minha. Os malditos não só me comem o pão e as horas, querem-nas de mim até que eu, esgotado e torto, vista o paletó de madeira. São destas coisas a vida, e ainda fica a despesa da cova e dos pregos à viúva, coitada. Quem inventa destas leis não tem os pulmões débeis e as coisas doídas que tenho. A viver e labutar (aos meus que diferença faz? Sendo um e outro os sinônimos, senão na ortodoxia semântica, certamente na realidade prática) até que se me esgotem as forças e os braços, até cair de cansado. Quem inventa destas normas não desempenha o trabalho desgraçante que eu faço.
E na nossa igualdade, eu nunca terei metade das coisas que vi meus patrões acumularem. Tudo que produzi, pelas horas que trabalhei. Nada acumulei. A letra da lei diz que somos iguais. Por lógica, assim, deduzo que devo à minha incompetência meu próprio destino. Pude frequentar colégios caros como meu patrão, não o fiz por não querer. Herdei a mesma posição abastada que ele. Pude a mesma vida que ele. A ninguém ousaria culpar minhas próprias incapacidades. Fui eu quem escolheu não crescer. Fui eu quem escolheu não lutar.
(Ian Caetano de Oliveira, mestrando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro)