Para ler mulheres
Redação DM
Publicado em 29 de setembro de 2016 às 02:33 | Atualizado há 9 anosUm portinha com duas árvores na entrada comporta universos. Mulheres em torno de um escrito confeccionado em época de Guerra, por exemplo, criam a expectativa para um debate sem fronteiras. Este é o LeiaMulheres realizado no Evoé Café com Livros. Desde a primeira edição foi assim: um objeto ordenado em páginas carregando como autor uma mulher e discussões sumindo entre navios. A edição de hoje tematiza o livro-reportagem A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch, e narra a participação de mulheres na linha de frente, ato que na maioria é narrado apenas por homens, excluindo a figura feminina no combate. O evento está marcado para às 19h30 e a entrada é gratuita.
“Até no que é mais profundo, até as camadas debaixo da pele. Diante da face da morte, todas as ideias empalidecem e se revela a eternidade incompreensível, para a qual ninguém está preparado.” Apenas um trecho do livro já permite o arrepio, convenhamos.
Para saber um tanto mais sobre o projeto e também sobre a pesquisa sobre obras escritas por autoras femininas, fomos atrás das produtoras do LeiaMulheres em Goiânia. Pilar Bu e Maria Clara Dunck dão dicas, apontam e também contam um pouco do que pode ocorrer ainda hoje. Confira entrevista.
Qual é esta edição do LeiaMulheres? Como funciona esse projeto?
Esta é a sétima edição do Leia Mulheres em Goiânia. Nossa estreia foi dia 30 de março de 2016, quando lemos Poética, da Ana Cristina Cesar. Na ocasião, alguns clubes do País alinharam a escolha da obra, já que a escritora carioca foi a homenageada da Flip deste ano e antes dela apenas uma mulher havia sido homenageada: Clarice Lispector, em 2005. O objetivo do Leia Mulheres Goiânia é muito simples e importante: somos um clube de leitura gratuito e aberto à participação de mulheres e homens, conhecedores ou não de literatura, que se reúnem uma vez por mês para discutir obras escritas por mulheres. O objetivo é divulgar essas obras e tirar a mulher que escreve da penumbra. Fazemos questão de reafirmar o óbvio: as escritoras são menos lidas, menos premiadas e menos aceitas no mercado editorial do que os escritores. Há pesquisas que comprovam isso. Também somos escritoras e sentimos os esteriótipos que são vinculados à escrita feminina e à escritora. Também tocamos nessas questões de gênero durante os encontros. Também é uma forma de incentivar as mulheres a se empoderarem para tirar seus escritos da gaveta e promover uma emancipação feminina por meio da literatura. Nossos encontros acontecem na última quinta-feira de cada mês, às 19:30, no Evoé.
O livro-reportagem A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch, é o objeto-tema do encontra na quinta-feira. Como funciona a seleção dos trabalhos que vão ser debatidos?
Bom, em geral funciona assim: decidimos um tema juntas (aliás, decidimos tudo juntas, somos uma dupla dinâmica!) e escolhemos três livros de acordo com esse tema, depois colocamos os livros com as devidas resenhas pra votação na página do grupo no facebook e as pessoas têm uma semana pra votar no preferido. Parece simples, mas não é. Ahahahhaa
A guerra não tem rosto de mulher competiu com Presos que menstruam, de Nana Queiroz, e A Mulher calada, de Janet Malcom, sobre a vida de Sylvia Plath. Nossa ideia era trazer o livro-reportagem para a discussão, até porque existe um tabu muito grande sobre a ligitimidade desse tipo de literatura. É muito comum as pessoas acharem que se não há ficção, não é literatura, mas até que ponto não ficcionalizamos a nós mesmos e nossas histórias? Até que ponto o recorte e o olhar que permeiam nossas escolhas não entrecortam uma narrativa ficcional? Escolher o que dizer e a quem dar voz é um ato político, que perpassa a literatura. O livro de Svetlana é duro, mas necessário para conhecermos o extremo do horror que aquelas mulheres viveram. É preciso lembrar e contar para não esquecer e nunca voltar a acontecer.
Para chegarmos aos três livros fazemos muita pesquisa, procuramos a disponibilidade e optamos por livros que não sejam tanto mainstream, livros que talvez as pessoas não fossem ler se não acompanhassem o LeiaMulheres Goiânia. Nossa ideia é dar visibilidade para obras escritas por mulheres que não sigam necessariamente o padrão comercial, aliamos obras que também são clássicos às mais novas, e gostamos muito de coisas independentes, diferentes e de trazer várias visões e possibilidades… Assim o leitor percebe o básico, mas que foi silenciado por séculos pela sociedade: mulher escreve sobre o que ela quiser! Escreve de tudo!
Tivemos seis encontros até agora: o primeiro foi uma ação nacional do #leiamulheres para a leitura da obra de Ana Cristina César, o segundo lemos Sem Palavras, de Larissa Mundim, porque queríamos homenagear essa escritora goiana e ativista cultural maravilhosa que amamos. Depois disso abrimos a votação em todas as outras quatro edições, mas mês que vem optamos por ler Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas. Esse livro é maravilhoso e urgente! A abertura de enquete se mostrou inviável para o 8º encontro em virtude de vários compromissos profissionais que tivemos e algumas questões familiares também. Aguarde, as votações irão voltar já pro 9º encontro!
A literatura brasileira é povoada de grandes escritoras. Clarice Lispector, por exemplo, é na minha opinião mais profundo que qualquer fosso (não fossa). Quais escritoras contemporâneas vocês mais (se) encontram?
O cânone brasileiro ainda contempla muito poucas escritoras. Dizemos isso como leitoras e também estudantes. No curso de Letras lemos poucas mulheres. Lá conhecemos Hilda Hilst, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles e a Clarice Lispector, claro. Mas a maioria das escritoras nós encontramos fora da grade curricular; e isso se deve, principalmente, à percepção do silenciamento histórico das mulheres. Gostamos muito da literatura considerada mais subversiva, como… O quarto de despejo, um diário sobre as vivências na favela da escritora mineira Carolina de Jesus, que durante muito tempo caiu no ostracismo, agora está sendo lido em clubes do Leia Mulheres espalhados pelo Brasil.
Seguindo essa temática, fora do mainstream, tem muita coisa boa rolando: Micheliny Verunsck com sua prosa pungente; Carla Diacov e esses poemas que são um murro no estômago, que nos desestabilizam; Jarid Arrais e o retorno do cordel como possibilidade feminista e de empoderamento; Aline Valek e a narrativa que precipita e transborda; Luiza Romão com seus versos que tocam na ferida; Elizandra Souza e essa poesia em legítima defesa, que coloca a mulher no cerne do debate; Conceição Evaristo, escritora multifacetada que desloca a gente e transforma nosso mundo.
O LeiaMulheres tem essa pegada também, de fazer um resgate histórico, de tirar esse véu, de desvelar, de colocar em foco a escrita de mulheres que ficou por tanto tempo relegada e subalternizada.
Pensam em levar algum livro dessas escritoras para as próximas edições?
Sempre! Se depender das nossas vontades de leitura, o LeiaMulheres Goiânia terá vida longa! É inevitável que nossas pesquisas e escolhas estejam pautadas por aquilo que a gente gosta, pela nossa visão de colocar-se no mundo, mas não só isso. Olhos D’água, da Conceição Evaristo, já esteve em votação, mas não ganhou e adoramos ela! Vamos poder ler muita coisa maravilhosa ainda. Conversamos muito sobre isso sabe, sobre como o LeiaMulheres Goiânia transforma muito o que está em volta, da gente, das pessoas que participam, do carinho e da troca que recebemos.
Nossa intenção é mesclar leituras pouco conhecidas às clássicas. Há espaço para todas! A poesia O útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas, por exemplo, será lida no nosso oitavo encontro. Sempre conversamos sobre esse livro, está muito presente em nossas vidas e pesquisas e é maravilhosa a possibilidade de colocar ele pra leitura e debate. E o nono promete boas discussões com o tema mulheres que, além de músicas, também escrevem. Adoramos música também.
Entre os diversos achados ao pesquisar escritoras mulheres, quais aspectos merecem maior destaque?
Nossa, tantos! Tem essa questão de achar pessoas, de trazê-las pra perto e juntos conseguirmos construir essa possibilidade de alteridade e empatia em torno da literatura de autoria feminina, de abrir as possibilidades.
Quanto a achados literários, em si, acreditamos que o último encontro mereça destaque. Na preparação pro 6º encontro, enquanto pesquisávamos, descobrimos a coletânea Além dos Quartos, do coletivo Louva-Deusas, que é a primeira coletânea erótica feminista negra do País. E daí percebemos que não poderia ficar de fora da votação. Era um universo muito rico, permeado pela coletividade e colaboração daquelas mulheres em torno de uma literatura de resistência e existência mesmo, que se descortinava diante dos nossos olhos como a possibilidade de mostrar para os integrantes do grupo algo quer era novo e subversivo pra nós também. A importância era muito grande como obra e então o livro ganhou, conhecemos as irmãs Romio (Priscila e Jackeline) e elas foram maravilhosas em todo o processo. Dois dias depois do evento ir pro ar no facebook a Anita Canavarro Benite, escritora que participa da coletânea e mora em Goiânia, entrou em contato com a gente e a convidamos para estar junto conosco no clube. Olha, foi uma das experiências mais importantes desde o início disso tudo! Aprendemos muito, ouvimos com amor e cautela tudo que ela tinha pra nos dizer e ensinar e comemoramos o nosso aniversário de seis meses da melhor maneira possível, do jeito mais belo que poderia acontecer. Esse talvez tenha sido o acho mais importante até agora: o humano, encontrar e possibilitar que as pessoas encontrem escritoras maravilhosas.
Aqui em Goiás também temos escritos de mulheres eternizados apesar da “novidade”. Olhando pra dentro desse caroço vocês veem a literatura de mulheres em Goiás com que relevo?
Se nem a escola goiana contempla as escritoras daqui, o que esperar do público, que não tem a oportunidade de desde cedo se habituar com a literatura local? A literatura goiana ainda é encarada como regionalista no cenário nacional, mas vai muito além disso. E é difícil escapar dessa generalização quando não se conhece além disso. Para as escritoras, é ainda mais difícil se projetar em um cenário tão limitador. Na segunda edição do nosso clube lemos Sem palavras, de Larissa Mundim e Valentina Prado, escritoras goianas. Ocasião em que também recebemos a presença da Larissa Mundim, que é uma importante agitadora cultural e possui uma obra profícua. Mesmo assim, ela poderia ser muito mais lida. Não faz muito tempo ouvimos falar da goiana Leodegária de Jesus, escritora negra que foi uma das primeiras mulheres a lançar um livro de poema em Goiás. Conhecemos sua obra por acaso. A ideia do nosso clube é justamente fugir do acaso e possibilitar escolhas. E isso só acontece quando descortinamos as escritoras, tanto as eternizadas quanto as novidades. O Brasil conhece Cora Coralina. Queremos que conheça muito mais.
Em se tratando da contemporaneidade, escritoras goianas muito poderosas têm surgido e precisam de mais visibilidade, como Dairan Lima, Cássia Fernandes, Dheyne de Souza, Aliny Pimenta e Anita Benite.
Indique algum poema ou trecho de livro de alguma escritora para o leitor do DMRevista
O Nunca Mais
não é verdade
Há ilusões e assomos, há repentes
De perdurar a Duração.
O Nunca Mais é só meia verdade:
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tempo não.
(E antevisses
Contentamento e morte na paisagem).
O Nunca Mais é de planícies e fendas.
É de abismos e arroios.
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino
No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
(Hilda Hilst – Cantares)
Meio-termo
Cansei dessa minha poesia educação
Com pernas cruzadas para não mostrar a calcinha
Dessas palavras cheias de entrelinhas
Que não dizem à que veio, cantadas não entendidas
Esse ar de “mocinha” escondendo a “puta”
Essas caras e bocas que não gritam e nem esperneiam
Cansei dessa minha poesia educação
Tão comportada, que irrita
Sempre como faca de dois gumes
Querendo sim, querendo não
Tão boazinha, que gosta de sal e açúcar
Sempre agridoce
Essa atitude molhinho de pimeta
Que nem arde e nem tempera
Essa quentura banho-maria
Que não queima e nem gruda
(Elizandra Souza – Águas da Cabaça)