A baba sagrada
Redação DM
Publicado em 21 de setembro de 2016 às 02:04 | Atualizado há 9 anosO seu nome é Siri. Não o nome de batismo, mas um apelido que pegou, jogando no ostracismo o verdadeiro nome. O principal nutriente desta alcunha foi o fato de seu dono se parecer com aquele bichinho, que gosta da areia do mar. Apesar de viver sempre respirando o ar puro que vem de longe, é sempre inquieto, girando a cabecinha mecanicamente e andando de um lado para o outro, da direita para a esquerda, ou desta para aquela. Isto dependendo da ocasião, pois há época em que ele fica enfurnado em sua obscura loca, às vezes lançando sua garra tenaz para fora para ver se pega algum inseto desprevenido.
Dos insetos desprevenidos, quando não os liquida logo, devorando-os, pica-os em várias facções, para depois recompô-los. Fica longos períodos nesta brincadeira de separar as facções e depois juntá-las novamente. Adora também andar de braços erguidos, sempre na posição de cumprimentar o primeiro que se lhe aparecer na frente. A grande maioria das pessoas que pega em sua mão fica sempre com a sensação de que pegou na mão de um santo. Poucos sentem a picada das tenazes e recuam.
Dizem uns que Siri é um verdadeiro líder, carismático, sua característica nata; outros que ele havia estudado, feito Faculdade, e bem merecia a posição que ocupa hoje. Para comandar o povo não há igual. Como todo mundo, tem defeitos e qualidades. Mas tem um defeito que está virando virtude para o povo. Aqueles que acham que é virtude tratam de convencer os que acham que é defeito, dizendo que tanto faz uma coisa ou outra, que as virtudes encobrem os defeitos e outros sofismas mais.
Dentre as suas virtudes (depois do convencimento geral não havia mais defeitos), uma é a de deixar as pessoas embasbacadas. Estas, quando na presença carismática de Siri, não conseguem nem mais se expressarem. Ele, mantendo a posse da fala, parece que encanta a todos que porventura travem conversa com ele. Por fim, basta a sua presença, para as pessoas ficarem boquiabertas. É estranho ver todo mundo de boca aberta, às vezes entrando mosquito, olhando paralisados para ouvir o grande líder.
Alguns, já acostumados com os mosquitos, não se importam e permitem que eles entrem e saem à vontade. Outros, os incomodados, para evitar o vaivém em suas bocas, levam esparadrapos para tapá-las. Se alguém quisesse, não havia problema: sabendo disto, os engravatados assistentes de Siri trataram de trazer caixas e mais caixas do produto para atender as pessoas. Estas, com o tempo vão se acostumando. Umas com os mosquitos outras com o esparadrapo. Estas últimas já não esperam nem mesmo o oferecimento: vão, elas mesmas, às caixas para pegá-los.
Certa vez, quando o grande líder, depois e ter fundado uma igreja e virado pastor, deitava falação ao povo, mesmo quem havia se acostumado com os mosquitos se incomodou. É que da boca de Siri estava saindo marimbondos, o que era bem diferente de mosquitos, pois vinham acompanhados de ferrões. Era o homem falando para as pessoas e estas aos tapas na cabeça, nos braços, nas pernas, enfim no corpo inteiro. Era um frenesi incontrolável. E lá de cima de seu palco o orador, por dentro, deleitava-se com toda aquela dança frenética. Mas se estava soltando aquilo, era para o bem de todos, era mister expulsar, com a penitência, todo mal do corpo. Chamando todos de irmãos, ia soltando os marimbondos com suas ferroadas salvadoras.
Mas havia momentos em que ele se incomodava, quando notava que alguém não dava a mínima aos marimbondos ou simplesmente os fechava na boca, mastigava-os e os cuspia. Um dia o grande orador pediu para que seus engravatados assistentes trouxessem à sua presença um senhor que os havia cuspido bem na sua frente.
O cidadão foi a princípio a contragosto, embora em seguida fosse convencido pelos engravatados assistentes a abrir o seu coração. E teve de ouvir sapos e lagartos do grande líder, que, enquanto vociferava sua verborreia e ameaçava fazê-lo queimar eternamente no fogo do inferno, ia fazendo cair sobre o coitado uma chuva de saliva. O homem ficou todo babado, depois do sabão que lhe passou Siri, que, vendo transfigurar o semblante daquele, percebeu algo de notável em sua baba. Percebeu que o homem não só engolia, feliz da vida, os marimbondos como também os sapos e lagartos. Destilando felicidade, parecendo levitar para o céu, o pobre babado saiu cantando e louvando o grande líder. Em seguida, voltou com um pequeno recipiente para recolher baba, dizendo que levaria para aspergir na esposa e nos filhos.
Sagrada baba, era a sua. Daí por diante o grande líder nunca mais conteve a sua babação sobre as pessoas. Para ouvi-lo, era mister a proteção de um guarda-chuva? Para quem quisesse se proteger, sim. Mas ninguém queria, já adoravam a baba sagrada, que, com o tempo, passou a ser vendida. Na verdade, não era bem isto; a orientação era a seguinte: quem quisesse colaborar para a preservação da baba, que colaborasse de bom coração, dava o quanto pudesse. Quem participasse, concorreria ao sorteio de um apartamento lá na rua das Almas, no Bairro Boa Passagem.
Um dia, porém, os engravatados assistentes viram a necessidade de uma reunião urgente com o grande líder. Disseram que era para aumentar a dose de babação, alcançar novos horizontes, pois o efeito em alguns já estava passando. Observaram boa parcela de pessoas se protegendo com guarda-chuvas. Quando não se protegiam, faziam pouco caso. Uns passam tranquilamente sob os respingos, como se estivessem num chuvisco qualquer. Havia até crianças brincando na viscosa baba, disputando uns com os outros quem escorregava mais longe. Houve um que machucou com um escorregão e os pais queriam saber quem eram os responsáveis, que iriam denunciar fosse quem fosse. Este fato foi o estopim para que convocassem a reunião.
Então eles traçaram metas e ganharam o país inteiro e foram atingir outros longínquos povos. E o líder ficou famoso, aliás famosíssimo. Aglutinava multidões para ouvi-lo, todos muito bem babados. O problema com os resistentes foi contornado, os pais foram convencidos de que a baba sagrada só faria bem às crianças, as quais, agora, até ajudavam a fiscalizar outras crianças que desdenhassem ou escorregassem nela. Quem não quisesse ir às reuniões, por um motivo e outro, não precisava: recebia agora, na poltrona confortável de sua sala, a baba sagrada.
(Joaquim de Azevedo, escritor)