O Supremo Tribunal Federal não sepultou a Lei da Ficha Limpa
Redação DM
Publicado em 31 de agosto de 2016 às 02:38 | Atualizado há 9 anosAo contrário do que muitos anunciaram nas duas últimas semanas, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4578 e nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29 e 30, não sepultou a Lei da Ficha Limpa. A discussão foi apimentada com a fala do Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, e também ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que afirmou parecer que a lei foi redigida por bêbados. Dias depois disse que a lei não deve ser canonizada.
Na disciplina de Lógica Jurídica, com o professor Cappi, aprendi que o ataque ao opositor, ao invés de ser ao seu argumento, constitui uma falácia argumentativa. É que se evita confrontar a base de fundamentação do opositor e parte-se para a confrontação da própria imagem do outro. Por isso, concordo com o quando o Ministro Gilmar Mendes afirmar que a lei possui inúmeras falhas que, em algum outro momento numerá-los-emos.
O Supremo, cumprindo o seu papel de guardião da Constituição Federal, apenas decidiu que a parte final da alínea “g” do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/90, com redação dada pela Lei Complementar 135/2010, é incompatível com a Constituição. Simplesmente isso.
Eis a parte dita como inconstitucional: “aplicando-se o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesas, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”. Por mandatários entendam-se os chefes dos Poderes Executivo e Legislativo das três esferas de governo que devem, segundo a Lei da Ficha Limpa, serem julgados pelo Tribunal de Contas respectivo, na atuação como ordenadores de despesas.
Ocorre, porém, que o artigo 71, I, da Constituição Federal é expresso ao afirmar que competirá ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, decidir sobre as contas do(a) Presidente(a) da República.
A Carta da República, quanto aos prefeitos, diz no artigo 31 que o parecer prévio do órgão competente sobre as contas do(a) Prefeito(a) somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
Vê-se, com facilidade, que existe uma aparente antinomia – contradição – entre a Constituição Federal e a Lei Complementar 64/90. Como resolver esse problema?
Logo nos primeiros dias na faculdade de direito aprendemos sobre a hierarquia normativa, e em especial a pirâmide kelsiana, elaborada pelo juspositivista Hans Kelsen.
Da visualização dessa pirâmide constatar-se-á que a Constituição Federal forma o chamado bloco de constitucionalidade e, por esse motivo, prevalece sobre a legislação infraconstitucional.
Logo, a decisão do Supremo Tribunal Federal foi a mais acertada possível, não merecendo qualquer reparo.
As vozes discordantes da decisão do Supremo Tribunal Federal dizem que o julgamento das contas dos Prefeitos pela Câmara dos Vereadores será meramente político e que o julgamento pelo Tribunal de Contas será técnico.
Será que dá para acreditar nisso mesmo?
O professor Nelci Silvério repetia em sala de aula do curso de direito, nos idos da década de 2000, que os Tribunais de Contas se constituem em cabide de emprego para políticos que não possuem mais condições de ganhar eleições. Basta olhar a composição dos Tribunais de Contas.
Aqui em Goiás, por exemplo, um desses políticos foi nomeado Conselheiro de Contas sem possuir, por incrível que pareça, nenhum curso superior. Como esperar atuação técnica nesse caso?
Não se concebe que a decisão do Parlamento será tão distinta, em seus resultados, quanto dos Tribunais de Contas com essa composição. De mais a mais, sempre fui crítico à Lei da Ficha Limpa. Primeiro, porque essa lei tencionou tutelar a vontade do eleitor, de um paternalismo exacerbado, tratando-o quase que como uma pessoa incapaz de fazer escolhas. Por essa razão determinadas pessoas sequer podem ser colocadas para apreciação do eleitor. Ao fundo e ao cabo, essa é a finalidade da Lei da Ficha Limpa: impedir que o eleitor vote em político corrupto. Alguém, com o mínimo de bom senso deve estar gritando: “é necessária a edição de uma lei para impedir o eleitor de votar em corrupto?”
Para aqueles que deificam da Lei da Ficha Limpa, sim.
Quando esse paternalismo se aflora na lei, de um certo modo, isenta o eleitor da responsabilidade de escolher bem os seus candidatos, pois, ao que parece, todos os candidatos com o registro deferido pela Justiça Eleitoral são ficha limpa.
Aliás, essa foi a grande farsa da Lei da Ficha Limpa: impedir que o político corrupto se candidate. Ela prometeu algo que não pode cumprir. A Constituição Federal veda a existência de sanções de caráter perpétuo de modo que a Lei não pode impedir que uma pessoa jamais volte a se candidatar. Em algum momento esse político irá retornar à vida pública. Ou pelo menos tentará.
Caberá, como deve ser, ao eleitor decidir.
A Lei da Ficha Limpa não foi nem será sepultada pelo Supremo Tribunal Federal. Tampouco deve ser santificada pelos operadores do direito.
Alexandre Azevedo, professor mestre em Direito Eleitoral da PUC-GO e da Unifan, assessor do TRE-GO