Artes apreendidas
Redação DM
Publicado em 17 de agosto de 2016 às 02:51 | Atualizado há 8 meses- No final de maio, o juiz Abílio Wolney havia proibido a artista Ana Smile de confeccionar e vender esculturas de santos católicos vestidos como personagens da cultura pop
Investigada por “crime contra o sentimento religioso”, Ana Paula Dornelas Guimarães de Lima, artista plástica mais conhecida por Ana Smile, teve um mandado de busca e apreensão realizado em seu residência. Por decisão requerida cautelarmente pelo promotor de Justiça Luís Eduardo Barros, 12 estátuas foram apreendidas: quatro imagens de São Judas, três de São Benedito, uma de “frei” e uma de Nossa Senhora de Guadalupe.
No final de maio, Ana, de 32 anos, havia sido proibida de fazer e vender esculturas de santos da Igreja Católica travestidos de personagens da cultura pop, como Superman, Malévola e a Galinha Pintadinha. O juiz responsável, Abílio Wolney Aires Neto, da 9ª Vara Cível de Goiânia, estipulara uma multa de R$ 50 mil em caso de descumprimento.
Em relação ao suposto crime contra o sentimento religioso, por “vilipêndio público” de objeto de culto, o promotor de Justiça informou que o processo administrativo contendo a notícia crime imputada a Ana já foi autuado e designada audiência preliminar para o dia 28 de setembro, às 15h20, no 3° Juizado Especial Criminal.
Justificativas
A ação contra a artista foi proposta pela Arquidiocese de Goiânia, que alegou que a sátira contra os personagens religiosos é desrespeitosa. “A autora extrapolou, deliberadamente, o seu direito constitucional de livre manifestação de pensamento, ferindo também o direito constitucional da Igreja Católica, de inviolabilidade de consciência e crença”, disse a Arquidiocese em nota.
Sobre suas páginas na internet, “Santa Blasfêmia”, a igreja as condenou por “ofender a coletividade, violando o sentimento religioso, ao empregar escárnio, sátira e ironia”. O Facebook e o Instagram da artista, onde comercializava suas estátuas, também foram derrubadas pela decisão.
O magistrado justificou seu posicionamento expondo leis sobre liberdade de expressão e de crença, afirmando que ambas são garantidas a todos, mas que deve se intervir quando os dois direitos se chocam. “Embora os direitos e garantias fundamentais estejam na mesma ordem, sem hierarquia ou primazia de um sobre o outro, quando houver conflito entre eles, deve prevalecer o direito à dignidade pessoal, à honra e à vida privada”, argumentou Aires Neto.
Na época da decisão do MP, Ana alegou que não quis agredir a fé de ninguém e que não entende o motivo da decisão e que as peças são apenas um fruto “de um trabalho ligado à cultura pop”. “Nunca quis agredir a fé de ninguém. É uma coisa para quem gosta de algo diferente. Sou de família católica e todos me apoiam, gostam do que eu faço e têm exemplares em casa. Minha avó, inclusive, que não sai da igreja, não viu problema”, disse.
Debate
A polêmica ao redor do caso gerou grandes debates, principalmente na internet. Divididos por aqueles que acham que a “religião” precisa ser respeitada e apoiam a decisão do MP, e outros que não acreditam que a arte não pode ser construída com escrúpulos e correntes morais e religiosas.
Heitor Vilela, ilustrador da página Rabiscos e Escarros, acredita que a decisão do Ministério Público é um um absurdo. “É revoltante ver que o Estado é pautado e que colabora com a censura ideológica, artística ou estética confeccionada pela Igreja. Após séculos de torturas e livros queimados, a inquisição moderna se aplica em artistas, no caso alguém que replica arte pop em objetos de gesso, que ela mesma compra e tem o direito de uso como bem entender. Impossível ser banal ou aceitável uma inquisição moderna, que censura e impede a arte e a livre expressão”.
O advogado Rafael Borges, por outro lado, acredita e concorda com o posicionamento do MP goiano. “Estamos vivendo numa era que as pessoas prezam muito a liberdade. Mas elas têm que entender que a liberdade coletiva vem antes da individual. A sua liberdade termina onde começa a do outra, e vice-versa: a liberdade tem um limite, e as leis e a Justiça existem para entender até onde a liberdade das pessoas podem ir. A liberdade de agir com escárnio com a crença do outro não pode ser considerada como algo inatingível”.