Despediu-se de mim por telefone
Redação DM
Publicado em 5 de agosto de 2016 às 02:10 | Atualizado há 9 anosConheci Dona Chica ao sair da porta da Rádio Cultura. Quase dando uma topada no seu corpo pequeno, de mulher magra e jovem, olhos grandes, vivos e curiosos.
– Você é o Iron?
— Sim. Em que posso lhe ser útil?
– Moro no Bairro Jundiaí, perto de onde você está construindo o Lar da Criança…
– Ah sim! Então estamos indo na mesma direção.
– É verdade. Aproveito sua companhia e sigo seus passos até onde nos convier, se não lhe incomodo?…
– Claro que não! Será uma honra sua companhia. Respondi.
E descemos a Barão do Rio Branco, que bem distante atravessaria a Av. Brasil, a Praça das Lavadeiras e pegaríamos a Mato Grosso…
– Sim, isto mesmo, a minha rua. Disse ela.
No percurso contou-me que era ouvinte diária das minhas crônicas e que não perdia nem uma. Todo meio dia e fim de tarde estava ela à beira do rádio, “bebendo” suas palavras (expressão dela).
Falou-me que trabalhava como merendeira numa escola – era casada e tinha onze filhos: seu marido era “mestre de obras” e um grande pedreiro, que contava, também, com inúmeras pessoas que trabalhavam em construção civil, e que se disporia a leva-los à edificação do Lar dos Jornaleiros que eu estava construindo.
– Mas que bom! A senhora caiu do céu!
– E nem machuquei!
Brincou, rindo comigo.
– Os que são dEle não se machucam! Exclamei.
– Sou frequentadora da Fraternidade Eclética Universal, o “Centro dos Barbudos”…
– Sim. Do Yocanan, conheço lá.
– Nossos companheiros da Fraternidade Universal – completou ela – também todos escutam suas crônicas e recomendam ouvir você. É de lá que vou mandar os pedreiros.
– Que bom! Já tenho os operários!
– Só nos finais de semana porque são pobres e apenas têm esse dia de folga…
– Não tem problemas. Durante a semana ajunto os materiais e, aos sábados e domingos, eles levantam a obra. E nós – da Juventude – seremos os ajudantes.
– Eu me encarrego de levar as amigas para fazer o almoço.
– Sim, minhas amigas a ajudarão…
E começamos o mutirão aos domingos. Constituiu-o as vinte e tantas moças e meninos a colaborar na grande obra. Meninos, filhos, parentes das pessoas e ouvintes dos programas, carregavam tijolos, adultos coavam areia, as moças, de duas, uma em cada braço dos carrinhos de pedreiros, carregavam areia e os poucos – e bons – rapazes faziam a massa, as mulheres, debaixo da paineira, providenciavam o almoço; e a casa grande ia surgindo do chão rápida e a olhos vistos.
Todos movidos pela fé e amor ao próximo. Ninguém faltava ao seu óbulo na mão-de-obra. Às cinco da tarde os pedreiros paravam “porque temos que dar uma “descansadinha”: amanhã cedo temos que estar no batente”…
– Claro, entendemos! Deus lhes pague! Até domingo!
– Se Deus quiser! E Ele quer – respondiam os homens braçais.
– E nós, agora! O que vamos fazer? Indagavam as 17 moças. E eu respondia.
– Também vamos embora! Não sabemos fazer nada sem os profissionais, não iremos estragar o que já está feito!
As mulheres, esposas dos pedreiros e amigas nossas, ajeitavam as panelas de alumínio e demais apetrechos de cozinheiro, cada qual pegando os seus. Sempre conversando, rindo, brincando.
As moças correndo de um lado para outro, uma delas cantando linda canção que eu adorava “Por quê”, de Joelma, “Que será”, enquanto as outras, as que esconderam os meus sapatos rindo às pampas, por me verem zangado à procura deles, dizendo “ih, tá frio! Tá quente, tá frio…”
Até que uma das senhoras reprimiam as meninas.
– Entreguem os sapatos dele, meninas!
E elas obedeciam. Quando descia as ruas do Jundiaí para a cidade, elas iam comigo, cantando “Testarda Io”, “Yo que tanto amo tu”, e outras, num clima de muita alegria e felicidade. Entre nós, a Dona Francisca Alves, seguida pelo séquito de filhos, com seu sorriso bom e semblante feliz.
Assim foram três anos. Até que a casa ficou pronta. Foi inaugurada. Muita festa e alegria. Antes de abrir oficialmente suas portas, já amparava cinco crianças que esperavam a inauguração.
No decurso de um ano a casa estava lotada. Crianças abandonadas vinham de todo canto, todo local, em todas as condições de pobreza, desidratação, fome, abandono. Eu que tinha projeto de recolher só jornaleiros arrimos de família, fui descobrindo que os necessitados da casa eram cada criança, mesmo as não nascidas, filhas de mães cujos pais as expulsavam de casa por não terem tido seus maridos, eu as recebia, a todos, porque deixar ao abandono uma mãe solteira seria cometer o erro de muitos pais, porque estaria deixando às durezas da vida duas crianças: a mãe e o filho. Dona Francisca era nossa parteira. Houve, às vezes, dois partos por semana. Até eu ajudei Dona Chica a fazer partos. E assim, o Lar da Criança HC, tinha já amparado a mais de duas mil crianças.
Os filhos de Dona Chica iam se tornando adultos e sua presença junto a eles se tornara inevitável em quase tempo integral. Duas a três vezes ao dia um filho seu aparecia à casa solicitando os favores de sua mãe.
Passado mais tempo, ela cansada de lida tão esforçada aproximou-se de mim, dizendo-me:
– Iron, vou me mudar para Estrela do Norte. Meus filhos estão todos adultos e quero ajudá-los a viver sem minha presença. Até hoje não fazem nada sem o meu concurso. Preciso deixa-los andar sozinhos. Já fiz de tudo para caminharem com as próprias pernas, mas nada! Pensei que se eu me mudasse para longe.
Foi aquela despedida triste, profundamente sentida, mas tive que atendê-la. Eu ficaria isento de uma colaboradora de primeira linha e de múltiplas tarefas: era enfermeira, era parteira, quem cuidava da farmácia, quem sabia o que tinha ou porque chorava uma criança. Enfim, Tia Chica se foi. Mudou-se para Estrela do Norte, onde seu belo coração tinha laços profundos e imortais.
Ficou aquele vazio na Casa e no coração de todos. Tão logo lá chegou montou uma pensão onde atendia os chegantes, viajores, a quem atendia gentil e prontamente.
Aos 61 anos adoeceu e seus filhos foram fazer-lhe companhia. Estava com uma doença inarredável na fronte. Seu filho foi buscá-la para tratamento. Disse que estava tão mal que sua cabeça não suportava a trepidação do carro na estrada. Sugeri-lhe buscá-la de avião evitando, assim, o desconforto de uma viagem tão longa. Não sei se por egoísmo ou receio de perdê-la, neguei-lhe meu carro e seu filho a trouxe noutro.
Mas chegando a Anápolis, foi direto para a casa de uma de suas irmãs. Estava muito debilitada pelo esforço da viagem e gravidade da doença.
Fui à casa de sua irmã, e lá vi dona Chica no leito; aquele sorriso de alegria e aquele olhar amorável cheio de brilho.
Reclinei-me até seu rosto para ouvir-lhe o que pretendia dizer-me. Por mais tentasse falar, eu nada ouvia. Acho que era devido a minha parca audição ou a sua fala muito fraca e já se apagando. Notando que ela me ouvia bem, disse-lhe:
– Tia Chica, eu não a ouço. Façamos o seguinte. O telefone tem um magneto. Vou para casa e ligo para a senhora. E você, Divina (filha dela) atendendo, coloca e segura o fone na direção da fala e audição dela. Daí, então, eu a ouvirei e ela me escutará. Assim acordado, dei-lhe meu abraço querendo ficar ali. Mas devido a este compromisso, despedi-me de todos. E fui.
Chegando a casa liguei para a Divina. Tão logo me atendeu fez o que foi convencionado. De telefone a postos, falei.
– Dona Chica?
– Sim, falou baixo, mas deu para eu ouvir: “deu para lhe ouvir, meu filho”…
– Então, como está? Indaguei.
– Feliz… – Respondeu ela e prosseguiu – feliz por estar falando com você tão logo cheguei… Feliz por estar bem…
– Mas doente? Bobeei – feliz estando doente?
– Sim. Feliz por estar me sentindo bem… Uma felicidade, meu filho, tão indescritível que queria lhe dá-la, como tal que jamais senti.
Não havia amargura nem tristeza nem luto na presença de Tia Chica. Estava sua vida, realmente, na plenitude máxima de sua ventura.
– Fique com Deus, meu filho, fomos muito agraciados por Ele por termos nos encontrado nesta… Vida… E fechou os olhos com zero força na fala.
Subiu aos céus! se despediu de mim por telefone.
(Iron Junqueira, escritor)