Opinião

Conversa de compadres, que encasquetou de matar o compadre

Redação DM

Publicado em 26 de julho de 2016 às 22:05 | Atualizado há 9 anos

Sucedeu que, por um és-não-és qualquer, Antônio Pernafina, morador na beira do corgo da Itaboca, ali no município de Conceição do Tocantins, encasquetou-se para tirar a diferença com um compadre, cujo nome não me alembro e só sei o causo.

O motivo de terem quebrado subitamente a boa avença foi coisica: parece que fuçação de porco dos zonzotros ou gado alheio, coisa assim, que levou Pernafina a se emperiquitar e botar na cabeça que tinha porque tinha de mandar o compadre pro outro mundo.

Correu ao velho Severiano, seu meio-vizinho de beira de corgo, combinando mais ele a empreitada. Pernafina não conheci, mas Severiano era velho curador, dador de remédio e consertador de vida escanchelada, e não faz muitos anos nós nos encontramos na festa da Conceição, quando ele me cobrou uma ida ao seu rancho pra “fechar o corpo”, de conformidade com um combinemo que tivemos numa quadra de festa na casa de João Cardoso.

Malmente ao dia quebrou a barra, saíram os dois para matar o homem. Estava escuro, mas de jeito que podiam divulgar a estradinha que os levou ao terreiro da casa do compadre, e lá foram se encostar num poleiro de pau-a-pique, esperando o dia quilariar, o que não tardou.

– Ei, cumpade! – salvou Pernafina, ali dejunto de Severiano, rebuçado num velho pelo de jegue, escorado no fuste da velha espingarda queixo-de-barro de caçar catingueiro:

Passados uns minutos, veio a resposta sonolenta, lá de dentro:

– Vamo encostano, cumpad’Antõe!

– Inhor, não, a demora é curta, meu cumpade. Só vim aqui mode matá ancê, que tenho de voltá pra brocá minha rocinha! Por isso truxe inté um cumpanhêro mode abriviá! – respostou de cá Pernafina.

– Cunversa besta, cumpade! Matá mode quê? – ponderou de lá o compadre.

– Ancê bem sabe…

Mal fechou a boca, dormiu na pontaria e papocou um tirinho de sua queixo-de-barro, que, dali a pouco, foi respondida pela pica-pau do compadre. Depois, pararam.

Fez-se um silêncio breve, e, um de cá e outro de lá, entabularam conversa, falando de roça, de chuva, das criações, enquanto o dia quilariava, pra Pernafina executar a empreitada.

O friinho da seca zinia no pé-do-ouvido, e a comadre, lá de dentro, avisou:

– Cumpad’Antõe, seu cumpade aqui tá meio endefluxado e mandei ele ficá no quarto, mode num pegá friage…

– Carece preocupá, não, minha cumade, qui espero o dia chegá mais um tiquim…

Severiano, rebuçado no cobertor velho listrado, escorado no fuste da espingardinha, já estava avexado:

– Tá é demorano!…

– Tem mão aí, Severiano, que nes’tante a gente arresolve.

Nisso, com aquele chove-não-molha, a comadre lá quebrou o gelo:

– Vamo entrá, cumpad’Antõe, que vô passá um cafezim forte mode rebatê o frio.

Convite de café não é coisa que sertanejo recuse, e não é à toa que a rubiácea é chamada por lá de “sangue-de-velho”, e Pernafina mais Severiano se alegraram. Levantaram-se, estralaram as juntas dos joelhos, mercê da posição de cócoras em que se achavam desde cedo, aprochegaram, abancaram após salvarem a mulher, que já providenciara a chocolateira na trempe, ali mesmo na sala da choupana de sapé. Encostaram as armas na parede de enchimento, beberam o café, prosearam um bando, e quando a conversa estava descontraída, o compadre saiu do quarto para beber o moca com beiju de massa, assim meio velhaco feito galinha vendo cobra, mas confiou que as armas estavam encostadas acolá longe, e salvou Pernafina, que respondeu sem demonstrar ressentimentos.

Ficaram eito de tempo proseando animadamente, quando, após muitas gaitadas, o compadre ponderou:

– Pois é, cumpad’Antõe, acho qui é bestage ancê querê me matá…

O outro parou de mastigar, passou a cacunda da mão nos beiços e aquiesceu:

– É… ach’qui ancê tem razão, cumpade. Dá risultado, não. Dismanchá u’a boa avença assim, num é?

– Apois num é? – ajudou Severiano, atalhando a conversa.

E Pernafina ainda completou:

– É o Cão que atenta. Ainda isturdia eu quage qui vim aqui pra mode vê c’ancê um salamim de arroz…

– Uai, cumpade, arroz aí na estiva é o pau qui hai!

Mandou vir um saco e deu-lhe um salamim de arroz com casca, e Pernafina, após agradecer todo mesurento, ainda reclamou que o compadre lhe devia uma visita.

E, tomando a estradinha, ganhou o rumo de casa, com Severiano atrás.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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