O fuso da roda
Redação DM
Publicado em 23 de julho de 2016 às 03:36 | Atualizado há 9 anosQuando morrer quero ser um cadáver bonito como é bonita a camisa do Vila Nova. De preferência com o rosto corado a sorrir para quem ficou com o espólio da terra. Os olhos estarão para sempre fechados e as lembranças mortas. Alguém vai dizer: “Ué, nenhum cadáver é assim”. Não é porque todo bom defunto se apresenta à Eternidade de olhos arrependidos para merecer a indulgência do Pai. Tudo isso que escrevo pode ser mais uma ilusão dos meus olhos míopes. A morte, ao contrário, é real. Mesmo que lutemos para sermos eternos ela vem implacável com a sua ceifadeira. Às vezes vem mansinha durante o sono e noutras chega arrasadora como são as ondas gigantes dos mares asiáticos. E o corpo se destrói nas ondas da vida com seus fluxos e refluxos. Talvez por essas coisas todo cadáver assuma a aparência de uma flor murcha. A teoria ressurgente de Nikolai Federow vence os limites humanos quando encontra o juízo final. E o homem continua a vagar pelo espaço tendo a morte como inevitável solução. Acredito ser essa é a única porta para o Eterno.
O bochicho nos velórios é o de que o morto partiu cedo desta vida ou de que, finalmente, descansou… A impressão que me resta, quando tento prever o que vem no galopar das eras e a de que serei um cadáver igual aos outros derrotados pela fatalidade da foice mortífera. Emil Cioran provoca quando diz que a certeza da não salvação do corpo é, na realidade, a salvação da alma. É com essa crença que mergulhamos nas reflexões do espírito. De modo mais prático dona Gê diz que o homem, com o passar dos anos, fica parecendo o fuso da roda de fiar, fino nos dois extremos e roliço no meio. E ela explica: “com a idade o homem afina as pernas, a bunda some, os ombros e os braços secam como se fossem jenipapos guardados na gaveta. E a barriga saliente forma uma bola no meio do corpo”. O vira-e-mexe do fuso para frente e para trás é a maçaroca da incerteza das crenças que adotamos.
Penso que o terror da morte seja o medo de ficar sozinho do outro lado da vida, amarrado numa pedra como ficou Prometeu depois de roubar o fogo: “Não me posso calar, nem protestar contra a sorte que esmaga” Ai de mim!”. Sendo assim, quando o corpo sucumbir diante da sorte madrasta, o espírito viajará pelo cosmo infinito como uma estrela a brilhar no eterno firmamento, mas com a face refletida pela Eterna Manhã.
(Doracino Naves, jornalista; apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 20h00.)