Opinião

O fim do mundo em Igarapava-SP

Redação DM

Publicado em 21 de junho de 2016 às 02:19 | Atualizado há 9 anos

Mas quem será que deu a notícia, soltou a bomba, que o mundo iria se acabar naquela terça-feira? Foi, de fato, uma bomba que chegou como uma avalanche. E não tinha ninguém para contestar, dizer que aquilo era boato, era mentira, que o mundo só se acaba pra quem morre e, infalivelmente, no final do ano 2.000: “Mil chegará, 2.000 não passará”, sentença que não consta nas Escrituras Sagradas. Até o Padre Abel Mendes Teles acreditou. Foi um alvoroço dos diabos, todo mundo querendo pôr os seus negócios e pecados em dia, o Padre se esbaldando em confessar tanta gente que desejava ir para o céu, ficar com a alma livre de pecados, ninguém devendo nada pra ninguém, nem aos céus. Muitos deixaram de trabalhar. Trabalhar, pra quê, se o mundo ia acabar? E quando? Logo na outra terça-feira, apenas uma semana mais de vida? O meu pai chegou do serviço, da serraria e carpintaria do meu avô, seu sogro, deixou o paletó na cadeira, que ele ia e vinha de paletó, mas lá no serviço ficava dependurado no prego, pegou do machado e foi rachar um pau de lenha, aliás, picar a lenha, que ele trazia nas costas todos os dias vários paus de lenha, serrados. A Serraria não era perto, ficava do outro lado da cidade, mais de quilômetro. Preparou lenha para somente até terça-feira. Depois não precisava mais, que o mundo já tinha se acabado. Deixou o machado fincado num toco, sentou no outro toco de pau e começou a falar pra nós, mais clamar que mesmo falar, se despedindo, talvez: “Então terça-feira às 5 horas da tarde isso aqui vai ser só cinza!…”

Até a hora estava marcada: 5 horas da tarde. E era com terremoto e fogo. O mundo seria arrasado e queimado, não era pra sobrar ninguém. Nem as pedras iriam ficar pra contar como tudo aconteceu. O prognóstico, aliás, a sentença, soube-se depois, quando chegaram mais notícias, era de Santa Emanuelina, uma santa que as beatas e o próprio Padre Abel ficaram conhecendo, de ouvir falar, naqueles dias. E orações próprias para Santa Emanuelina, quem sabia? Ninguém sabia. Nem o Padre sabia. Ele compôs algumas às pressas e todo mundo decorou, que o povo passou a encher a Igreja e fazer caridades, todos ficando generosos e contribuindo com os óbolos, que os óbolos funcionavam como a compra de ingresso para entrar no céu. Também pra quê guardar dinheiro se o mundo ia acabar? Sebastião, o sacristão, recolhia a dinheirama miúda, quilos e quilos de níqueis de tostão, 200 e 400 réis, sem saber o que fazer com tanto dinheiro. Daria tempo de gastar tudo até na terça-feira? E deixar pra virar cinza, tinha graça? Ele enchia os bolsos e adquiria, escondido do padre, tudo o que sempre precisou, e nunca pôde comprar. Era aproveitar que a terça-feira estava logo aí.

Na segunda-feira já não houve aula no Grupo Escolar. Eu e a minha turma já estávamos achando aquele fim do mundo bom demais da conta. Não ter aula? Vai ser bom pra lá, fim do mundo! Tomara que tivesse um fim do mundo todo mês. Nós não alcançávamos o sentido da coisa, não imaginávamos como seria a catástrofe. Sabíamos que tudo era sólido e duvidávamos muito que a cidade, as árvores, o campo de futebol, o imponente Grupo Escolar, as casas grandes dos turcos ricos, ainda mais a Igreja, grandona que era e que frequentávamos à força, fosse se aplainar, nivelar com o chão, virar cinza. Até que a Igreja não era ruim que se acabasse não, tendo nós que freqüentar, na marra, as missas aos domingos e logo depois, o Catecismo, aquelas rezas forçadas, enjoadas, ensinadas e rezadas muito a contra gosto de ambas as partes. E o Catecismo era sempre na hora do futebol e, ainda por cima, aqueles doutrinadores maus e sem nenhuma psicologia, sem nenhum método pedagógico. E padre Abel pregava : “É o fim dos tempos. É o pecado que está demais. São os vícios. É o afastamento da Igreja. É o afrontamento contra Deus. É a ganância dos preços altos (os comerciantes  eram quase todos sírios, chamados de turcos). Sodoma e Gomorra! Tudo devido o pecado. Eu sempre prego: Deus tarda mas não falta!…” E as confissões se realizavam dia e noite, por aglomerações intermináveis, que o fim do mundo estava aí, era correr pra dar tempo, senão, inferno para as almas pecadoras. Mas naquela segunda-feira da véspera da hecatombe, que seria a maior catástrofe mundial, veio, não se sabe de onde, uma notícia alvissareira: Santa Emanuelina dos Coqueiros avisava que o fim do mundo fora adiado, que os preparativos não  ficaram prontos, e o “evento macabro” ficava prorrogado para a próxima sexta-feira. Foi um alívio, um ressuscitamento geral e ufano! E no  segundo parágrafo da sentença: quem cavasse na sala, debaixo da talha ou do pote e encontrasse alguns pedaços de carvão, que os colocassem imediatamente dentro da talha de água e quem bebesse dela, somente a família da casa, todos se salvariam. Que ninguém bebesse água na casa de ninguém, que aí o carvão não valia, seria o carvão salvador somente para aquela casa onde o carvão fora encontrado. O meu pai não perdeu tempo. Veio lá da Serraria com o enxadão, surrupiado, que a demanda para as ferramentas de cavar era muito grande.

A nossa sala, onde estava a talha sobre a cantoneira, era ladrilhada de tijolos comuns. Meu pai retirou facilmente uns dez ou doze tijolos e meteu o enxadão pra valer na terra socada, dura a não ter mais por onde. Mas a terra mais em baixo estava úmida e assim que furou uns dez centímetros o serviço ficou fácil. O perigo estava em ele acabar com o mundo de tão nervoso, pois a gente estava empelotada em cima, com o risco do enxadão rachar  a cabeça de um de nós. E a minha mãe comandando, que a minha mãe era enérgica e mandava mesmo, até no meu pai tinha hora que ela mandava: “Cavuca, Tonho! Deixa de ser mole, homem!”  E ele suado, vermelho feito um pimentão, como aqueles pimentões que a minha mãe picava fininho pra pôr no molho da macarronada, aos domingos. O velho, “brontolando”, mandava firme o enxadão, tendo o cuidado de descer certinho no meio de tanta gente. Quando a amolação estava por demais, inclusive com os mandos da minha mãe, ele ficava mais nervoso, parava o serviço e entregava o enxadão, dizendo:

– Cavuca você, Pina, pra ver se é bom.

E ela, mais enérgica, ainda:

–  Cavuca você, que isso é serviço pra homem!

A gente pedia pra cavucar, mas ele não deixava, alegando que aquilo era serviço pra homem! Não havia escutado a mãe falar, não?! Com meio metro de buraco furado foi aquela algazarra:

– Estamos salvos! Viva Nossa Senhora Santa Emanuelina?!

– Viva o seu Vigário?!

– Viva!!!…- gritava dona Pina, minha mãe. É que parece que havia um depósito de carvão ali debaixo. Umas duas mãozadas dele e da minha mãe foram para dentro da talha, que foi preenchida pela Chica, indo e voltando correndo com o balde d’água, uma água fresquinha colhida na ponta do cano lá na barraca de lavar roupa. Mas a água não foi fácil, não, que não havia torneira, enchia era no registro que ficava na frente da casa, perto da rua. Tinha que correr lá, abrir, e depois voltar, não com menos pressa, que o meu pai não queria que se desperdiçasse água, que pagava multa. Mas ele nunca quis comprar e colocar uma torneira. E pra quê tanta sede? Esvaziávamos quase a talha, todos ávidos de beber aquela água milagrosa e salvadora. Pronto, nós estávamos livres do fim do mundo! Assim a preocupação nossa foi geral, nossa não, dos meus pais, o Tonho e dona Pina: todos passaram a querer saber se os outros parentes e amigos mais chegados  haviam encontrado o milagroso carvão de Santa Emmanuelina dos Coqueiros.  E não é que quase todo mundo encontrou?! E não era carvão mineral não, era carvão vegetal mesmo, desses de fogão de lenha. Nem que fosse um pedacinho, muitos encontraram. Nós bebíamos água fartamente. Igarapava estava quase toda salva. Mesmo assim não deixou de preocupar, que houve, na prorrogação, um item que incomodou muito: havia a prorrogação de terça-feira, das  5 horas da tarde para sexta-feira mas, ao meio dia, com um prejuízo lastimável de cinco horas.

Todos acreditaram piamente na notícia do fim do mundo, mas no carvão, alguém tinha as suas dúvidas, pois como é que uns carvãozinhos mixurucos daqueles dentro d’água iriam segurar terremoto e fogo sagrado? Será?  O certo é que a expectativa era muito grande e as horas avançavam rapidamente; rapidamente, não, vertiginosamente.

A sexta-feira amanheceu com um sol brilhante e quente demais. Será que o sol veio mais quente trazendo o fogo que iria queimar o mundo? O certo é que todos achavam, não se lembravam dele ter sido tão quente assim nas outras manhãs. A profecia de Santa Emmanuelina parecia ser séria, mesmo. Lembro-me que a minha mãe nos deu café reforçado, que ela não iria fazer almoço, que morrer com a barriga cheia fazia mal, era gula, e gula era pecado.

– Mas e o carvão, mãe?

– Sei lá, filho, pode ser boato pra engambelar as pessoas… o povo inventa tanta coisa pra tirar o sossego da gente…

O meu pai estava nervosíssimo e só tomou uma xicrinha de café. Também, ele não fumava. A vizinhança estava combinando de ir todo mundo para a Igreja, que morrer dentro da Igreja, na casa de Deus, era mais recomendável, ficava mais fácil de ir para o céu. Depois veio alguém correndo, foi o Messias, carregador de defunto,  dando a notícia de que a Igreja estava apinhadinha de gente, tal qual sardinha na lata e o padre mandou fechar as portas. Quem estava de dentro, estava de dentro e quem estava de fora, estava de fora, esse era o recado. Ele gostaria de proteger a cidade toda, mas que não tinha culpa da lgreja não comportar todo mundo. Então ficou decidido, ao menos naquela parte nossa, que era o alto da Caixa d’Água, que cada família ficasse em sua própria casa, todos rezando e bebendo  da água. O meu  pai estava arrasado, mas a minha mãe, mulher decidida, apesar de mãe amorosa, mantinha uma calma muito grande, que somente fui notar, por reflexão, muito tempo depois. Por que aquela calma, se nós todos iríamos morrer, se caso a água falhasse, se o carvão não valesse? Era uma mulher que sabia das coisas. O que encabulava, deixava a gente, não se sabe se esperançoso ou nervoso, eram os sinos da Igreja tocando finados, um sinão lúgubre, o outro metálico, de uma tristeza sem fim, pois o fim estava chegando. E os badalos batiam e dobravam: blém… blin… blém… blin…

Os relógios na cidade não eram muitos, mas o meu pai tinha um cebolão de bolso, marca Postala, e dependurou-o pela corrente na parede à vista de todos. Aí o relógio virou santo, que nos encandeava sem piscar e as mandíbulas matracando rezas, ave-marias em abundância, entrecortadas de padre-nossos e uma salve-rainha no final de cada terço, voltando às ave-marias, que os terços eram rotativos. Pra recomeçar alguém saia puxando na frente de outras pessoas que também queriam sair puxando o terço,  mas não tinham chance. E a minha mãe nos dava croques, em mim e nas minhas irmãs, que nós pronunciávamos as palavras pelas metades, ou melhor, pelos pedaços, comendo mais sílabas do que o relógio, com os olhos… nossamorteamem!… dito  fruto…

Aí a Chica, minha irmã mais velha, a única que estava acreditando piamente na estória, falou:

– Como é que pode uma casa cair e pegar fogo no meio das outras? Umas acabar e as outras não acabar?

Minha mãe opinou:

– É, isso não está certo. Deus é pai de todo mundo, de todos nós e Ele não vai fazer uma coisa dessa com a gente. Se é pra acabar com o mundo, com uns sim, e outros, não, não está certo, porque Deus não ia fazer uma coisa dessa, Ele que é justo!… Tonho, meu pai, fez  uma careta e concordou, afirmando com a cabeça.   E eis que os ponteiros se juntaram, o ponteirinho das horas ficou escondido debaixo do ponteirão dos minutos. Foi o coito mais reparado, mais angustiante que assistimos. Todos pararam de rezar e foram olhar para fora, pelas janelas, os sintomas do mundo, um último olhar para o mundo que agonizava, que acabaria naquele instante. Mas, após o “orgasmo”, o ponteirão saiu de cima do ponteirinho e foi descendo, se largando, distanciando-se. O meu pai, ajoelhado (era a primeira vez que eu via o meu pai ajoelhado), apoiou a mão espalmada no chão e se aprumou:

– Uai! O mundo não acabou não?!

– Pra nós que temos carvão, não – respondeu a minha mãe com um sorrisozinho irônico, quase incrédula. Aí eu falei:

– Vai ver que acabou pra quem não achou carvão, pai…

– Mas eu não ouvi estrondo, barulho nenhum de fim de mundo!…

Aí todo mundo saiu pra rua, esvaziaram as casas. Era uma alegria, uma euforia, todos se abraçando, vivendo, ressuscitados!

Mas daí um pouco, alguém acabou com a festa dando o mais justo e o mais infeliz dos palpites:

“Aquela antecipação das 5 horas para o meio dia deve ter sido rebate falso. O mundo vai acabar é mesmo às 5 horas!…”

Foi aquela água na fervura. Todo  mundo voltou pra casa e recomeçou tudo de novo. Nós na rezação e o meu pai tirou o relógio do bolso e dependurou-o novamente na parede.

Me lembro que durante a espera, dei a bronca:

“Ficar mais 5 horas aqui? Fico não! Pra mim o mundo pode acabar…” Não entendi porque a minha mãe não me deu um puxão de orelha, como era o costume, quando me levantei e saí afoito. Passei a mão na bolona de borracha e fui pro meio da rua. Em menos de meia hora a pelada estava armada, nós numa algazarra danada, ninguém se importando se o mundo ia acabar ou não.

“Eita mundo, bão caba não!” Macktub!

 

(Bariani Ortencio. [email protected])

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias