Opinião

O Coronel e o Diabo

Redação DM

Publicado em 15 de junho de 2016 às 02:30 | Atualizado há 9 anos

“Nascido na fronteira de São Paulo com Minas Gerais, quase numa barranca do Rio Grande, Waldomiro Bariani Ortencio é um paulista bastante mineiro. Mudando-se na adolescência para Goiânia se tornou um goiano de fato e de direito (a lei nº  6.899, de 30/04/68, de minha autoria, lhe concedeu o título de Cidadão Goiano).

Sua vida, grandioso exemplo de trabalho e capacidade, efetiva bonita saga. Bariani saiu do zero e chegou ao infinito possível. Aluno do ensino médio, dava lições de Matemática (bem pagas) a colegas atrasados nesta matéria. Ia-lhes às casas de bicicleta. Afeiçoado ao futebol, ganhou fama como goleiro e o carinhoso apelido de Paulistinha. De jovem costureiro, ao lado da mãe e das irmãs, passou a pequeno comerciante; depois, a empresário de sucesso.

Não  alisou os bancos de uma faculdade. No entanto, tem suado a camisa no amanho das letras. Conduzido pelos livros que já escreveu, mais de 40, alcançou o pódio; vale dizer, em memorável cerimônia a Universidade Federal de Goiás o declarou Doctor Honoris causa.

Bariani Ortencio realmente sabe as coisas, faz a hora; não espera acontecer, corre atrás. No mundo da literatura é contista, romancista, letrista, compositor. Em pescaria, catedrático. Donatário de prodigiosa energia, é homem cordial com ímpetos de carcamano…

Visto como ficção, O Coronel e o Diabo constitui bem-vinda novidade, tecnicamente ousada e magistralmente criada.

Seu enredo propriamente dito, a rigor, se desenvolve apenas na quinta fase, curta e derradeira. Configura o dantesco confronto do Coronel com o Diabo, que houve quando Satanás exigiu de Jesuíno o cumprimento do trato deles; e recebeu uma afronta:

– O senhor pra levar a minha alma vai ter que me matar!

Realizou-se o duelo e o cristão perdeu. Mas o vigário Caim Matheus Fiorentini explicou por que seu amigo foi o vencedor:

– O Diabo pode ter levado a alma do Coronel, mas o corpo dele vai ser ressuscitado  e vai para Deus.

No romance convencional, comumente, a argamassa da história resulta da interação de seus personagens. Em O Coronel e o Diabo, Bariani Ortencio  se distancia dessa forma clássica. As criaturas que seu poder de ficcionista gerou são sertanejos vivendo sua vidinha em Serra Alta, simples e livremente. Não são fantoches que os desígnios de calculada trama manipulam.

A linguagem aperfeiçoada de todo ele o classifica como típico romance  da atualidade, conforme assegura Mário Vargas Llosa: A partir  de autores  como Joseph Conrad, e, sobretudo, Henry James Proust, começou uma cisão sutil na arte narrativa. O gênero literário, consciente de que romance  é mais forma – palavra e ordem – que enredo, vai progressivamente se concentrando  naquela, em detrimento deste.

Enfim, romance ou não, O Coronel e o Diabo é obra sui generis.

Não me lembro de ter lido um livro de feitura tão original. E olhe que já li milhares de páginas…

Waldomiro Bariani Ortencio o denominou como um território minado pelo mandonismo prepotente do coronelismo.

Gustave Flaubert confessou que madame Bovary, a personagem maior do seu excepcional romance, era ele.

Na verdade, O Coronel e o Diabo nos remete a O Coronel e o Lobisomem, a obra-prima de José Cândido Carvalho; também nos encaminha ao ensaio sociológico Coronelismo, enxada e voto, magistralmente escrito  pelo jurista Victor Nunes Leal.

Noto, outrossim, significativas relações entre o trabalho singular do escritor goiano e a reportagem monumental de Euclides da Cunha. Os dois revelam apaixonado  conhecimento pelos gerais e amorosa consideração à gente desses confins.

Observo ainda que Os Sertões se manifestam em oito capítulos. Substancialmente, porém, se compõe de apenas três  partes: A Terra, O Homem e a Luta (esta seção se desdobra em cinco textos correlatos, com títulos diferentes). A narração em O Coronel e o Diabo se desmembra em cinco estágios.

A Terra de Euclides lembra Serra Alta, a cidade roceira, o chão bruto de Bariani; as principais figuras do seu livro (Coronel Jesuíno, Major Ladislau, o jagunço Tião, o professor Incógnito, o Vigário Abel, Dona Genoveva, Dona Prudenciana) e os diversos coadjuvantes se apresentam ao leitor e contam a sua história, conversam entre si, propala como vivem: seriam o  O Homem, da epopeia euclidiana.

O motivo político dos numerosos combates ocorridos entre as tropas federais e os fanáticos de Antônio Conselheiro, ou melhor, a causa da Campanha de Canudos, que originou o genial afresco de Euclides intitulado A Luta, surge em O Coronel e o Diabo como o pacto do carola Jesuíno Cristiano Bento  Prudente de Morais com o Demônio. Terminou num duelo de cunho medieval…

Por último, como o próprio Bariani reconhece, seu livro é uma caldeirada de personagens, ou seja, uma mistura de fatos com realidades imaginárias; de casos, que ele ouviu, com vivências alheias ou dele mesmo e de sua família (muitas lembranças de seu avô materno Fioravante Bariani).

Há neles, outrossim, culinária, folclore, crendices, religião, política, ciência, ocorrências memoriais. À moda de Guimarães Rosa, o acadêmico Waldomiro Bariani Ortencio extrai, amiúde, bonitas metáforas da fala popular. Grande sertão, veredas…

Esse aspecto enciclopédico de O Coronel e o Diabo me permite assinalá-lo ainda como adequada versão ficcional do Dicionário do Brasil Central, outra preciosa contribuição do prolífico Bariani Ortencio à cultura brasileira.”

Ursulino Tavares Leão é romancista histórico, ex-presidente da Academia Goiana de Letras, ex-deputado estadual e ex-vice governador do Estado.

Dia de Santo Antônio de 2016

 

(Bariani Ortencio. [email protected]. Assentada de um testemunho – Apreciação por Ursulino Leão)

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