Pedra…pedra…pedra…
Redação DM
Publicado em 27 de maio de 2016 às 00:48 | Atualizado há 9 anos
O poema “No meio do caminho” (1928) até hoje deixa o leitor hesitante. Com aquela pedra ali pousada, impenetrável; qual entrave a obstar a passagem e a impedir a interpretação. Ou qual a misteriosa esfinge: decifra-me ou devoro-te. Drummond escandalizou românticos e parnasianos quando elevou à expressão poética um tema tão trivial e sem sublimidade lírica quanto uma réstia de cebolas; com a certeza vulgar da pedra: mineral sólido; de superfície áspera ou lisa. Disposta a afrontar mortalmente o critério infalível do belo. Com efeito, para os românticos e parnasianos a arte era e é ainda o belo. Urge concordar com Graça Aranha, para quem “nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte do que a beleza”.[1] Graça está plenamente convicto de que a arte é independente deste preconceito. E ciente de que a emoção vai muito além da Castália. A arte “é outra maravilha que não é a beleza”.
É a maravilha da impulsão lírica em liberdade. Da destruição do sublime artístico e a construção de novas formulações temáticas. A ausência de sublimidade poética vem também expressa na adoção da forma popular “tinha uma pedra”. Ao invés de “havia uma pedra”, forma mais culta e erudita.
Eis a pedra vulgar então a consagrar a liberdade de Mário de Andrade no seu ensaio A Escrava que não é Isaura. “Todos os assuntos são vitais. Não há temas poéticos. Não há épocas poéticas”,[2] proclama Mário. A inspiração “pode nascer de um réstia de cebolas como de um amor perdido”. (…) “A inspiração surge provocada por um crepúsculo como por uma chaminé matarazziana, pelo corpo divino de uma Nize, como pelo divino corpo de uma Cadillac”. Mário conclui, servindo-se de uma comparação de Ribot, que há o subconsciente enviando telegramas e mais telegramas à inteligência.
Daí tão controverso, tão intrigante, que o próprio Drummond atribui ao poema da pedra o condão de “dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais”.[3] Em virtude, muito certamente, da sua vagueza. Por isso a divisão das pessoas em categorias. A incerteza distancia, enquanto que a certeza aproxima as pessoas – sentença meio à conselheiro Acácio.
Mas, vá lá! Textos vagos e indeterminados como tal costumam dar margem a muitas interpretações; proporcionar diatribes entre acalorados contendores e, finalmente, separar as opiniões em correntes inconciliáveis. O poema parece indicar a influência de certos postulados.
Dentre estes postulados, o objetivismo dinâmico, esposado por Graça Aranha na sua conferência O Espírito Moderno, pronunciada na Academia Brasileira de Letras a 19 de junho de 1924. Para a qual artista é quem transmite sentimentos vagos. Mas o artista não deve se limitar a transmitir estes sentimentos indefiníveis. Consoante se lê em O Espírito Moderno, deve realizar também a fusão do seu ser no Universo.
O artista é aquele que possui e transmite esses sentimentos vagos, transcendentes e realiza na obra de arte a fusão do seu ser no Universo.[4]
O leitor deve concordar com o seguinte ponto de vista: num Universo em processo, objetivo e dinâmico, submetido a constante transformação e movimento, em que tudo passa, se esvai, sucumbe, perece, o meio mais hábil de se eternizar consiste em ser indeterminado com as coisas indeterminadas. O que eqüivale a ser móvel com a mobilidade universal.
O pensante deve fundir-se no objeto pensado. Ser instável e perecível com ele. Quiçá morrer com ele. Nem sempre morrer significa o fim. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define o termo vago como o “que se apresenta inconstante, mutável, instável” (…)“que vagueia, errante”. Acodem as lições do pré-socrático Heráclito de Éfeso (540 – 480 a. C.), marcadas pela convicção de que o movimento acha-se na essência das coisas. Assim a doutrina que encare o Universo como perene movimento e transformação.
Daí os verbos vagar, errar, mover. É isto aí, a emoção estética é uma situação errante, móvel, ao passo que as verdades definitivas e absolutas são irremediavelmente estáticas. Estas, à falta absoluta de oxigênio e movimento, acabam inevitavelmente por se mumificar.
Por sua vez, “o espectador da obra de arte que sente, movido pela expressão artística, aquela emoção vaga, indefinível, atinge a estética do Universo”, acentua Graça Aranha. Acompanha o Universo no seu perene dinamismo.
“Todo o conhecimento do Universo é estético, desde que não se pode explicar cientificamente a substância. Dos contatos, que nos vêm pelos sentidos, resultam sentimentos vagos, que nos levam à indiscriminação no todo infinito”.
É assim, movido pela expressão artística, que o autor deste artigo sempre sente aquela emoção indefinível, quando se lhe depara a oportunidade de ler “No meio do caminho”. E quando se lhe depara o ensejo de traduzir os telegramas que a atividade inconsciente envia à atividade consciente. Afinal, consoante Mário de Andrade, o leitor é que deve se elevar à sensibilidade do poeta; e não o poeta à sensibilidade do leitor. “Pois este que traduza o telegrama!” Antes, ele, o leitor, que mate a charada. Com efeito, cuida-se de um dos textos poéticos mais ambíguos das letras nacionais. Pois ninguém se arriscaria a afiançar, com certeza, o que o poeta quer transmitir.
Bem como afiançar, com segurança, se o autor empregara aquela pedra no sentido real, literal ou denotativo. Hipótese em que a intenção do emissor fora de fato informar simplesmente se tinha ou não tinha a tal no caminho. Cumprindo, pois, o que se chama de função referencial, informativa ou cognitiva da linguagem.
Ou, deixando-se librar nas asas do simbólico, se Drummond optara mesmo foi pelo sentido metafórico, figurado ou conotativo. Este caso se presta a várias interpretações. Dentre estas, a de que o autor valer-se-ia desse artifício para criar a supra-realidade. Para começar, ocorre a etimologia do termo indígena Itabira, o nome da terra do poeta em Minas Gerais. Itá (pedra); bira (brilho). Pedra que brilha. Indício revelador: tratar-se-ia de sentido conotativo. Quem sabe símbolo evocativo e sentimental da meninice. Com tudo aquilo que a terral natal implica de reminiscente: infância, folguedos, festas populares, antepassados… Provável alegoria de semântica fechada.
Seu significado estaria vinculado a um contexto fechado, bem restrito: a cidade em que o poeta nasceu. Ei-lo a declarar, bem no começo da segunda estrofe:
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas fatigadas.
O tom aparentemente lírico e dramático desse extrato diverge dos demais versos. A subjetividade intervém como ilha isolada em meio à objetividade textual. A começar pelo uso da primeira pessoa do singular (Nunca me esquecerei…); o que demonstra não ser o texto tão objetivo assim, como desejaria o objetivismo dinâmico. Isto porque a primeira pessoa emerge como sintoma indicador de certo fluxo de consciência e subjetividade lírica da mão que escreve. Ao invés da terceira pessoa (No caminho tinha…). Aí está Graça Aranha quando conclui não ter a poesia moderna se desgarrado totalmente ainda do sentimentalismo. Mesmo nos versos de Apollinaire, Cocteau, Cendrars, Ivan Goll existe uma espécie de “constância lírica”. Mas não se deixe enganar o espectador com o mero circunstancial. Outro texto de Drummond faz descrer dessa possível evocação sentimental. Nele comparece a disposição de evitar “versos sobre acontecimentos”. Aí está o poema-manifesto Procura da Poesia (1944), em que ele mesmo adverte…
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. (…) Não recomponhas/ tua sepultada e merencória infância.
Em que pese opinião contrária do ensaísta e poeta Gilberto Mendonça Teles, um dos amigos mais chegados ao autor universal de Alguma poesia (1930), agasalhar, na sua obra Retórica do Silêncio I – teoria e prática do texto literáriio, a inter-relação de circunstâncias que acompanham a poesia drummondiana.
Apesar dos poucos traços biográficos possíveis de identificação na sua obra, é fácil averiguar que toda ela – versiprosa – corresponde a essa dualidade: de um lado, a obra poética – mais próxima de Minas e construída sobre um tempo passado que se atualiza no silêncio interior da linguagem poética.[5]
Quanto à prosa, Gilberto constata a vinculação ao Rio de Janeiro, “de um tempo cotidiano e contínuo, em que os temas ou são motivados pelo fluxo da reminiscência (mesmo no caso da crítica) ou são recolhidos diariamente da agitação da vida carioca”.
Em continuação ao sentido conotativo, irrompe a verificação já sugerida no início destas linhas: a pedra compareceria no texto como insígnia dos vários obstáculos que a sua poesia, livre dos cânones da métrica e a rima, precisara contornar, antes de se impor ao gosto conservador.
Mas nem toda pedra no caminho constitui obstáculo à passagem. É o caso da laje colossal, suspensa, em guisa de ponte, sobre o leito de um rio e unindo uma margem à outra. Esta é uma hipótese em que ela não barra, mas franqueia o acesso do viajante à margem oposta. E é o caso do substantivo feminino, alpondra. “Cada uma das pedras que formam, de uma margem à outra de um rio, um caminho que pode ser percorrido a pé; passadeira; pondra”. Define o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Goiânia, 31 de outubro de 2008.
[1] Conferência com que Graça Aranha inaugurou a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, em 13 de fevereiro de 1922. Está publicada em Espírito Moderno. São Paulo, Cia. Gráfica Editora Monteiro Lobato, 1925.
[2] Mário de Andrade apud Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2000, 16ª edição, p. 304.
[3] Carlos Drummond de Andrade apud Gilberto Mendonça Teles. Retórica do Silêncio I – Teoria e prática do texto literário, José Olympio Editora, 1989, 2ª edição, p. 214.
[4] Conferência de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras, em 19 de junho de 1924. Está publicada em Espírito moderno. São Paulo, Monteiro Lobato, 1925.
[5] TELES, Gilberto Mendonça. Drummond. In: Retórica do Silêncio I – Teoria e prática do texto literário, José Olympio Editora, 1989, 2ª edição, pp. 218-219
(Pedro Nolasco de Araujo, bacharel em Direito, especialista em Direito Constitucional, mestre em Gestão do Patrimônio Cultural e membro da Associação Goiana de Imprensa)