Brasil

Uma canção ao golfinho da praia de Santa Teresita

Redação DM

Publicado em 21 de março de 2016 às 00:29 | Atualizado há 9 anos

Lindo golfinho da praia de Santa Teresita, tu que agora nadas nalgum oceano mais imenso e azul, recebe a ternura do meu abraço. Mas a ternura dum abraço que jamais te sacaria do mar da tua casa, da casa do teu mar. Dum abraço que jamais te tiraria a respiração, e te secaria os bofes, e te desidrataria até a morte. Não um abraço motivado unicamente pela estúpida vaidade duma selfie. Jamais um abraço desses.
Recebe a ternura do meu abraço como se te abraçassem só meus olhos, sem nem te tocarem minhas mãos, sem te tirar do liberto e gigantesco amplexo do mar que te mantinha vivo, tal qual te abraçasse apenas meu olhar. Quem ama não precisa possuir. Muitas vezes, nem tocar. Assim é o meu abraço em ti, lindo golfinho-do-rio-da-prata. Não te toco com os braços. Não te tiro da água. Não te possuo. Não te mato. Não te arranco da alegria do teu mar, para não fazer qual um cego egoísta num gesto despótico. Não te toco com os braços. Não te tiro da água. Mas te amo.
Eras tu apenas um bebê. Tão pequeno. Tão viva e enternecida a tua existência. Mas a busca da selfie perfeita custou o teu sacrifício. E as águas do mar argentino onde foste imolado ficaram menos prateadas e mais vermelhecidas, inquinadas pelo sangue esvaído da tua vida.
Te amo e peço o teu perdão. Por mim e meus irmãos – imperfeitos que somos – pelo quê fizemos contigo. Choro por ti, por nossas faltas como humanos carentes e cegados pelo orgulho. Tu, que foste morto pela multidão inepta e sôfrega pela satisfação da luxúria da egolatria. Assassinou-te um punhado de meus irmãos desesperados pela realização de sua lascívia narcisista.
A tua morte, lindo golfinho, é só uma amostra dos imensuráveis maus que causamos, eu e meus irmãos, contra a nossa casa comum. Só uma pequena amostra das atrocidades que podem fazer nosso abjeto egotismo e nossa anencefalia de amor.
Por que os humanos da nossa raça nos achamos tão superiores? Por que dominadores e destruidores? Por que somos tiranos dos nossos semelhantes e também das outras espécies? Por que opressores das outras raças? Somos donos da casa comum e dos seus bens? Por que ditadores dos recursos da natureza, do verde e dos animais?
Praticamos a economia da morte e da desigualdade inclemente, que deixa à margem da dignidade e nos abismos da miséria bilhões de irmãos, que devasta a natureza e mata a face e o âmago do planeta, alimentando a viciosa locomotiva do consumismo maníaco. Difundimos a globalização da indiferença e da insensibilidade. Vivemos num tempo em que sentimos mais com a ponta dos dedos ao modo de vida touchscreen, do que com o coração deveras. E nossa indiferença em conluio com nossa fatuidade nos cegam e envenenam a ponto de assassinarmos uma vida, de um inocente golfinho, pelo preço de reles fotografia.
Quão severa é a enfermidade que acomete o espírito humano destes tempos, meu Deus?!
Tanta sabedoria circula pelas redes sociais em volumes e níveis de sapiência jamais vistos, que, diante dos sábios de hoje, sou levado a indagar-me do paradeiro de Aristóteles, Platão, Sócrates e toda a plêiade dos sábios da Grécia Antiga. Onde estão? Quem são eles diante da gigantesca sabedoria dos tantos sábios de hoje? Devem ter-se escondido de vergonha nalgum oráculo do firmamento… Se bem que sábios da estirpe socrática: deles nem precisamos mais. Porque hoje todos somos perfeitos sábios e, aliás, só sabemos que tudo sabemos. E a modéstia é demodê. Até as crianças e adolescentes já são sábios. E já indicam os caminhos corretos para seus pais seguirem na vida. Mandam muito. Ordenam e exigem demasiadamente como se o mundo lhes devesse toda a satisfação. Não escutam nada. Não escutamos nada. A propósito, para quê servem hoje os ouvidos? E tão néscios são nossos corações.
Tantas demonstrações falsas de amor aos holofotes. Tantos benfeitores às câmeras. Mas somos capazes de enxotar um irmão faminto e maltrapilho que nos pede um biscoito quando lanchamos fartos, numa confortável tarde em boa lanchonete. E com esse irmão ralhamos para que saia da frente e pare de incomodar-nos. Do alto da nossa estultícia, somos capazes de vitimar a vida dum golfinho apenas pelo torpe e baldado propósito de receber algumas dezenas ou centenas de curtidas.
Vangloriamo-nos em ser difíceis, em ser autossuficientes, em sequer olhar nos olhos do irmão, quando, na verdade, nossos corações padecem e vagam sem sentido no caminhar do existir. Achamos pomposo ser difíceis, não nos esforçando para baixar os olhos orgulhosos do alto dos pescoços em riste para acariciar com o olhar um irmão que precisa só da ternura desse olhar. A gentileza é muito cantada e quase nada vivida. Desde a gentileza da saudação dum bom dia até a gentileza do amor mesmo, chegado às maiores consequências. Mas se ganhar um bom dia está rareando, esta última modalidade de gentileza já é pedir demais… Olvidemo-la.
Achamos pomposo ser difíceis. Doamo-nos muito pouco. Somos inteiramente nossos. E ainda temos a desfaçatez de apedrejar os irmãos que se doam, que ajudam pessoas e causas além de si, no mínimo que seja. Ficamos, assim, só para nós. A verdade é que só sobramos para nós. E, assim, realmente só sobramos. Quando não nos partilhamos, atrofiamo-nos. Quando não vivemos em comunhão com os irmãos e a natureza, mofamos nosso espírito.
Nada é nosso. Somos nada. Sendo apenas passageiros deste mundo, devemos conviver com nossos irmãos e com as riquezas de vida em fauna e flora com harmonia, equilíbrio, sabedoria, zelando por elas, parte que somos da natureza. Imperioso convivermos qual parte do todo e não como donos de tudo. Como se a natureza fosse uma cornucópia de bens infinitos sempre pronta para ser abusada e explorada ao bel-prazer dos nossos infames e insaciáveis desejos. Como se estivesse sempre disposta e feliz a se escancarar à libidinagem das nossas impetuosas veleidades, nossos apetites absolutistas. Devemos amar a Terra. Não a estuprar.
E embora não sejamos nada, não podemos querer ser nada. Já que “a vida é muito curta para ser pequena”, no refletir de Disraeli.
Veja você, caro ledor amigo, o quanto a morte do golfinho precisa ser refletida. Quantas implicações desperta… Vejo-a só como uma ponta de iceberg. (E quantas outras pontas de iceberg disseminadas!…)
Vê, tu, amado golfinho, o quanto tua morte a mim representa.
Suplico-te perdão, lindo golfinho da praia de Santa Teresita. Talvez não seja por acaso que para o oceano mais infinito tenhas partido duma praia com o nome de Santa Teresita. O nome bonito de uma santa tão cheia de amor a Deus e a todas as maravilhas de Sua criação, da qual tu participavas. Morreste naquela praia e partiste com as bênçãos de Santa Teresita.
Tua vidinha tão bela e tão frágil ante a voracidade dos homens. Tu, criatura abençoada, foste morto pela insanidade dos homens da era do ego, feras do ego. Foste vítima deste mundo marcado pelo egocentrismo cego e desmesurado. Foste feito mártir nas mãos dos sicários contratados pela vaidade. Vaidade de mãos sujas de sangue. Vaidade que mata.
Morreste para saciar o deleite das belas cascas mostradas à exaustão nas redes sociais, que, todavia, não raro, encobrem corações doentes. São belíssimas, mas finas e perecíveis cascas dum ovo de gema ainda mais frágil, feia, carente.
Criatura serena, pura, feliz. Ser abençoado da criação divina. Ser bendito que cumprias a tua missão maravilhosa de viver e realizar o magistral ciclo da vida e da natureza. Ser que com todos os seres fazia a natureza, a qual ora segue se fazendo em perene e perfeita constância, sempre bela, toda bela, toda graça, toda grata pela contribuição que a ela ofertaste com tua vida.
Eras tu da espécie dos golfinhos franciscanos. E, só por teu nome, já inspiravas as bênçãos de alguém que muito amou e louvou a criação de Deus. A propósito, tenho que evocar São Francisco de Assis, quando, em seu Cântico das Criaturas, entoa: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as Tuas criaturas […] Especialmente o senhor irmão Sol, o qual faz o dia e por ele nos alumias”.
Com as palavras de São Francisco, louvo-te, Criador, com todas as Tuas criaturas, e peço-te, tal qual faz o dia com a força suprema do Sol, que nos alumies nossos corações tão pobres com Tua luz maravilhosa, que aniquila toda treva, para que não nos percamos nos caminhos maus pelos quais tantas coisas nos conduzem. Para que não nos iludamos com as belezas aparentes que levam à ruína do ser. Para que fulgures com Teu sagrado esplendor de vida nossos corações enevoados, perdidos, famintos de Ti. Para que nos valha com Tua sublime misericórdia, abrindo Teu perfeito coração às nossas misérias. Tem de nós compaixão, Senhor.
Ó, Deus Pai, que é todo o amor e fonte de toda a vida, ensina-nos a viver e amar. Ao invés de matar a Tua perfeita e bendita criação, ensina-nos, Senhor, a cuidá-la, amá-la e louvá-la.
“Laudato si’, mi’ Signore.”
E louvando a Deus por tua vida e por toda a vida que há no milagre da Terra, nossa casa comum, recebe a ternura do meu abraço como se te abraçassem meus olhos. Em troca, recebo um abraço amoroso do teu olhar, lindo golfinho da praia de Santa Teresita.

(Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, nome literário Rafael Ribeiro Rubro, advogado, escritor, poeta, cantor e mochileiro. Colaborador do jornal “O Vilaboense”, articulista do Diário da Manhã. Membro da Ovat (Organização Vilaboense de Artes e Tradições), da UBE – Seção Goiás (União Brasileira de Escritores), conselheiro da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e presidente da Comissão Permanente de Licitação do Município de Goiás. ([email protected])

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