A democracia, a liberdade e seu valor
Redação DM
Publicado em 26 de fevereiro de 2016 às 01:39 | Atualizado há 10 anosEm dias recentes a imprensa brasileira noticiou com o devido alarde a decisão majoritária do STF no julgamento do HC 129.262/SP, pela qual a nossa Corte Maior autorizou o início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Não é muito lembrar que a liberdade está entre os valores maiores preservados pela Carta Cidadã, cujo artigo 5º define que “Todos são iguais perante a lei… garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade…”
Como visto, e não é por mera coincidência ou por simples técnica redacional, que a vida e a liberdade são sequencialmente asseguradas a todos os que vivemos em terras brasileiras.
É que esses valores são de conteúdo assemelhado, pois já se disse que a vida não tem gosto sem a liberdade para vivê-la.
Nos idos de 1937, sob a batuta da Polaca surgiu o Decreto-lei 88, cujo artigo 20, inciso 5º, instituiu a regra pela qual “presume-se provada a acusação, cabendo ao réu provar em contrário”.
Ainda que estivéssemos sob a égide do estado totalitário getulista, a regra transcrita não tinha aplicação genérica, limitando-se aos casos de delitos contra a segurança do Estado e quando o réu fosse preso com arma na mão.
Tratava-se, portanto, de regra específica, com detalhado casuísmo, sem aplicação genérica a todos os processados.
Daí, sinto-me autorizado a concluir que o precedente do HC 129.262/SP pode gerar consequências mais gravosas do que a norma casuística cuja eficácia deu-se na primeira metade do século passado.
É que com a decisão aberta da Suprema Corte, a cidadania brasileira fica à mercê do humor do juiz sentenciante, desde que sua sentença seja confirmada em segundo grau, mesmo que contra o julgado esteja pendente recurso revisionista.
Como bem lembrou o ministro Celso de Mello no voto divergente, 28,5% dos Recursos Extraordinários Criminais foram integral ou parcialmente reformados entre 2006 e 2016. Trata-se, portanto, de porcentual expressivo de cidadãos que, prevalecendo a nova inteligência quanto ao início do cumprimento da pena, terão enfrentado as grades sem justa causa para tanto.
É comum usarmos de casos concretos para defender o agravamento das penas e também o início de seu cumprimento. Ocorre que o Direito é uma ciência e não pode ser interpretado e ou aplicado com a dimensão que temos de nós mesmos e com as sequelas de nossas frustrações.
O Direito não pode ser escrito ou aplicado sob o efeito de sentimentos pessoais e, por isso, não é muito ratificar o princípio constitucional brasileiro dando conta de que só a sentença condenatória definitiva merece ser cumprida.
Também não vale a comparação imediata do direito brasileiro com as democracias vividas pelos americanos do norte ou mesmo pelos franceses, pois as Constituições daqueles países, embora democráticos, não consagram o princípio indicativo de que o cumprimento da pena só pode se iniciar quando a sentença se tornar definitiva, como faz a Constituição Brasileira.
Como disse o ministro Celso de Mello, não custa rememorar que essa prerrogativa básica – a de que todos se presumem inocentes até que sobrevenha condenação penal transitada em julgado – está consagrada não só nas Constituições democráticas de inúmeros países como o Brasil, mas, também, em importantes documentos internacionais de que são exemplo a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (1948); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e até mesmo a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (1990).
Por fim é indispensável registrar que no julgamento do ARE 639.337/SP o mesmo Supremo estabeleceu que “o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”.
Embora possa parecer excessivamente libertário, concluo que o cumprimento genérico de penas antes do trânsito em julgado da sentença que as impôs, leva-nos à quimera do caminho mais curto para a segurança de todos.
(Felicíssimo Sena é advogado)