Iphan fantasiando a história
Redação DM
Publicado em 23 de fevereiro de 2016 às 02:13 | Atualizado há 9 anos
Criado para amparar e divulgar o patrimônio histórico e cultural brasileiro, o Iphan é um órgão vinculado ao Ministério da Cultura e tem atuação em todo o território nacional, contando com 31 representações.
Sua missão é das mais relevantes. E entre ações e omissões ele vai fazendo com que o acervo das histórias oral, visual e documental seja correspondido pelo patrimônio material e imaterial que lhe são contemporâneos. Assim o Iphan contribui para levar o passado ao futuro e dar bases ao nosso processo de desenvolvimento social.
Em Goiás encontra-se a sede da 14ª Superintendência Regional, que cuida (ou deveria cuidar) do muito pouco que temos de legado histórico, seja ele arqueológico, arquitetônico, cultural ou artístico.
São mais de meia centena de funcionários, incluindo a diretoria que é a mesma há mais de década e dá ares de um inevitável ‘cansaço de material’, com três representações distribuídas entre Goiânia, cidade de Goiás e Pirenópolis, Mas, e se o Iphan faz justamente o contrário do que é seu dever? E se ele ao invés de proteger os bens imóveis tombados os faz tombar literalmente, apagando os rastros moleculares da nossa história? E se ao invés de restaurar ele age como um construtor de prédios e os chama de históricos? E se, de instituição de preservação, ele vira uma empreiteira da história?
Pois é isso mesmo que está acontecendo agora na cidade de Goiás, com o beneplácito da prefeitura local e da Secretaria Estadual de Educação, Cultura e Esportes, que se dão as mãos para nos apresentar uma ação artificial de suposto resgate histórico.
A receita é simples. A reforma do Teatro São Joaquim, uma das mais conhecidas edificações culturais da antiga capital, fica mais barata e mais rápida se destruído completamente para depois ser construído um totalmente novo no mesmo local. Assim, passa-se a régua nos custos e uma rasteira na história.
Quem hoje passa diante do Teatro São Joaquim não vê sequer um tijolo do que foi este pequeno tesouro da incipiente história cultural goiana, pois o Iphan o tombou literalmente, até o último reboco.
Foi uma demolição projetada e comandada exatamente por aquela única instituição que podemos contar na preservação dos rastros históricos. O tombamento (literal) não veio depois de iniciada a suposta restauração, mas foi um prérequisito dela. Portanto, chamar de “adequação” o que vai ser totalmente destruído para depois ser reconstruído é crime lexicográfico e que certamente encontra seu correspondente nas leis que regem o serviço público.
A destruição do Teatro São Joaquim para no lugar colocar um outro novinho que de comum terá apenas o nome nos coloca diante de um órgão público que nega suas finalidades. O que o Iphan está fazendo é um drible na história e também na legislação em vigor, transformando uma anunciada restauração em uma construção de fato, sendo que esta já estava prevista desde o início da obra, de acordo com o que está documentado no seu processo (O Popular (10/02/16).
E se é para fazer o novo, tem que assumir a iniciativa e fazer tudo corretamente, desde a decisão arquitetônica mais adequada para o novo prédio, com consulta pública, até o edital de convocação para construção, e não para sua restauração. Em resposta, temos um processo fantasioso, para uma obra também fantasiosa, isto é, que pretende se dizer histórica sem o ser.
Difícil entender como isso acontece sob o comando de um dos ou-trora mais respeitados órgãos da cultura brasileira, cujo principal inspirador, o poeta modernista Mário de Andrade, macunaimicamente chocoalha os ossos quando escuta na boca de gestores e técnicos sem preparo o nome da instituição que na década de 1930 ele ajudou a criar.
Infeliz São Joaquim. Só o nome lhe será preservado. Seu passado está agora unicamente nos alfarrábios e nas lembranças digitais. O prédio virou restos de entulho descartado fora. É uma perda e, sobretudo, uma vergonha. Estamos nús diante da história. E refletidos na cegueira de uma instituição que deveria proteger nosso legado e que, para facilitar seu trabalho, o destrói.
(Px Silveira, presidente do Instituto ArteCidadania)