Beijo dobrado
Diário da Manhã
Publicado em 12 de março de 2016 às 00:15 | Atualizado há 9 anos
Silvestre era um moço muito simples.
Desses que julgam os outros pelo próprio coração. Melhor dizendo: achava que todo mundo fosse como ele.
Era quase ingênuo. Não tinha malícia.
De manhã, costumava colher uma flor no jardim de sua casa, e seguia para a repartição onde trabalhava, cheirando aquele floco de pétalas perfumosas e coloridas.
No meio do caminho, dava a flor para um conhecido, para uma criança, uma velha, uma amiga, e seguia em frente, cabisbaixo, meditativo, completamente alheio a tudo.
Certa manhã colheu uma flor muito bonita: branca, mas salpicada de vermelho.
“Coisa interessante, sô!” Conjecturava, observando, minuciosamente, aquela flor diferente, que não conhecia.
“Troço gozado! É toda branca, mas pintada de rubro.”
Baixou a cabeça e tomou o rumo do trabalho. Encontrou uma vizinha sua, e cumprimentando-a com um “bom dia, dona Ester”, atirou-lhe a flor, esquecendo-a em seguida, para de novo mergulhar nas suas reflexões.
Dias depois, ao cumprimentar dona Antônia, outra vizinha, esta o chamou e lhe disse, rindo a valer:
– Você sabe da maior? A Ester está escandalizada com você!
– Mas, por quê?
– Ela disse que você lhe deu um “beijo dobrado”.
O moço ruborizou-se:
– Que é isso, dona Antônia! Isso não é brincadeira que se faça… Dona Ester é séria e casada… Certamente não topa esse tipo de conversa.
– Mas foi ela mesma quem disse homem!
– Disse o quê?
– Isso, que lhe falei!
– Olhe dona Antônia, vamos respeitar a dona Ester e mudar de assunto. Afinal, é ótima vizinha, educada, estudei com ela no mesmo colégio, conheço-a de há muito tempo e nunca, sequer, peguei na mão dela, iria, então, dar-lhe um beijo? E, ainda por cima, dobrado?
– Ela disse que você é muito sem vergonha ou, no caso, muito ingênuo!
– Não estou entendendo… Exclamou o rapaz, meditando.
– Mas eu – disse d. Antônia – acabei explicando a ela que você, dando-lhe a flor, não quis insinuar nada…
– D. Antônia – pediu Silvestre – quer ser mais clara?
– Você deu a ela um beijo dobrado, não foi?
– Eu? O que é isso, d. Antônia! Só dei um beijo na Tonha, minha namorada!
– Não é isso, rapaz! Você deu a ela uma flor, um dia desses, certo?
Silvestre meditou, pensou, e afinal, lembrou-se:
– Ah, foi sim!
– Pois é. Aquela flor é um “Beijo-dobrado”.
– Ah! Riu Silvestre: nome mais besta, para uma flor…
– E ela pensou que você estivesse com certas intenções e, por isso, disse que nunca mais iria à sua casa…
– Tanto melhor, dona Antônia: quem não sabe receber uma flor, não pode cruzar o jardim lá de casa…
E rumou para o trabalho. Mais adiante, meditando em torno do que ouvira, atirou na rua a flor que retinha na mão: começava a conhecer a sujeira da vida…
Os homens maculam até mesmo a pureza de uma flor.
A pureza só é pura, enquanto o homem não lhe põe o pensamento.
Quantas coisas limpas, sujamos.
Nem Jesus escapou da lama dos homens.
As estrelas ainda não se apagaram porque os homens não conseguiram, por enquanto, colocar-lhes as mãos.
Pena que o papel acabou.
(Iron Junqueira é escritor)