Opinião

Mãezinha e a aula de caligrafia

Redação DM

Publicado em 10 de fevereiro de 2016 às 22:23 | Atualizado há 9 anos

Minha mãe continha dentro da sua, a minha mão direita, segurando um lápis apontado. Coordenava minhas articulações, desenhando sobre a folha de um caderno as letras: A grande, a pequeno, B maiúsculo, b minúsculo, e assim por diante. As letras deveriam ser bem traçadas, com nitidez dos caracteres e simetria dos traços: era a aula de caligrafia. Era ao mesmo tempo o começo da arte de desenhar com distribuição gráfico-visual das linhas na página em branco.

Daí era fácil associar as letras aos nomes dos lugares que eu via distribuídos nos mapas, nas aulas de geografia (mapas confeccionados manualmente por meu irmão Antônio Vieira, que vivia em Formosa, o qual colaborava com mãezinha, já que o Estado não fornecia às escolas nem ao menos mapas geográficos). Assim, me vinham à mente topônimos que me soavam intuídos pela sonoridade como sendo lugares poéticos – Juazeiro, Pirapora – palavras que eu pronunciava com gosto, alongando as vogais Ju-a-ze-e-e-e-i-ro, Pi-ra-po-o-o-o-ra, e soletrando-as ao vento como a sugerir distâncias.

 

As fantasias

Quando minha mãe dava uma folguinha, eu começava a brincar com as letras: de A nascia árvore, e desenhava uma árvore. De B nascia borboleta, que eu desenhava ao lado. De C nascia uma casa, em cujo oitão eu me situava, brincando. De D nascia Deus, criador do mundo (a grande casa que cabia toda a humanidade). Do E nascia meu nome, Emílio, que eu dividia ludicamente: Eu, milho. Então continuava a fantasiar. Eu, milho dentro de um imenso milharal, que se estendia na grande casa de Deus que é o mundo, e imaginava-me dormindo à sombra de uma árvore descomunal que unia a terra ao céu, depois despertava e saía correndo à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras das borboletas azuis, como no poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu. O leitor sabe como são fantasias de criança. A essa altura eu já estava invertendo a sequência das letras A-B-C-D-E. (E – de Emílio, C – de casa, D – de Deus, A – de árvore, B – de borboletas). Bom mesmo da aula, era fantasiar.

 

Mundo da poesia

Foi sempre assim. Também na adolescência. Nas aulas regulares, ou regulamentares, quando os professores falavam de uma determinada matéria, eu logo começava a viajar por mundos imaginários e quando voltava à realidade da aula, tinha dificuldade de articular o começo com o fim.

Quando devia estudar história, pensava em geografia. Quando pensava em estudar geografia, lembrava-me das lições de português. Quando começava a estudar gramática, saltava para a leitura de poemas. Daí, sim, me transportava para espaços metafísicos. Bastava olhar pela janela e contemplar as serras. As distâncias sempre me atraíam quando eu contemplava as serras, azuladas pela própria distância.

Tinha então dificuldade de me adaptar à realidade concreta. Sempre achei que o mundo da subjetividade era maior que o da objetividade. Que o mundo da poesia era melhor que o da matemática. E como não aprendi matemática, não aprendi também a contabilizar, e comecei a levar a vida pela lírica desordem.

 

À margem da estrada

Dizendo essas coisas, me lembro de uma viagem que fiz com Mãezinha de Goiânia para Posse. Era um fim de tarde. À margem da rodovia Brasília-Fortaleza, um morro de pedra estava sendo transformado em pedreira (leia-se britadeira). Começava a destruição da paisagem montanhosa da região em função da indústria de transformação de pedras de construção, comercializadas em Brasília. Vendo esse quadro, tive vontade de fazer alguns versos. Quem me socorreu foi minha mãe. Tomou de um pedaço de papel avulso e começou a escrever os versos que eu ditava, ao trepidar do carro. Para eu não perder a inspiração.

Ali era a serra, agora a pedreira / que encerra a história do homem e da terra. / À margem da vida,os velhos amigos, / os meninos velhos, ainda analfabetos. / À margem do tempo,os parentes pobres, / pobres pares, entes ainda analfabetos. / À margem da estrada, agora o progresso: / segue como a serra, que vai para onde?

Que tem isso a ver com a aula de caligrafia? Certamente: a vocação deste escriba, guiado pela mão de sua mãe.

(Texto publicado originalmente no livro de Emílio Vieira, Dossiê de uma Professora, Goiânia/Kelps, 2009).

 

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])


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