O grifo de abdera
Redação DM
Publicado em 20 de janeiro de 2016 às 20:50 | Atualizado há 5 meses
“Alguém me disse que antigamente o nanquim era extraído do polvo.
Me parece que o polvo desprendia sua tinta quando se sentia ameaçado.
Creio que, quando desenho, eu devolva ao nanquim sua função primitiva.
Eu sou como o polvo.”
(Lourenço Mutarelli – O grifo de abdera)
Desde 2010 o autor – consagrado na cena dos quadrinhos nacionais e celebrado entre leitores de literatura a partir de seu O Cheiro do Ralo – não brindava seus leitores com obras inéditas. Ao que nos é dado saber, aparentemente, estava tendo problemas com uma proposta editorial chamada Amores Expressos, que lhe estava tomando tempo e não estava tendo o rendimento esperado.
Nesse interim, a editora Companhia das Letras, que atualmente publica as obras do autor no Brasil, havia relançado uma de suas histórias em quadrinhos mais famosa:A Trilogia do Detetive Diomedes(2012). Publicou também o conto ilustrado inédito Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente(2011). E em 2013 o autor participara de um projeto chamado Cidades Ilustradas, que resultou de um livro seu com ilustrações da cidade de Manaus, consoadas por uma história ficcional.
E o versátil artista também legou algo aos fãs do cinema nacional atuando no aclamado longa de Ana Muylaerte Que Horas Ela Volta?Mas os fãs da prosa do autor só puderam revisitá-lo em algo inédito no final de 2015. Não se decepcionaram (nem decepcionar-se-ão os que ainda não leram, mas pretendem) em O Grifo de Abdera,o livro é, a um só tempo, bastante parecido com os precedentes estritos pelo autor, mas também é algo distinto dos anteriores. Permeado em metalinguagem, pode ser aproveitado por qualquer um, mas tem “frames” a mais para aqueles que conhecem a trajetória do autor e já tiveram seus outros livros em mãos.
O livro conta a história de Oliver Mulato, um frustrado professor de educação física que começa, sem razão aparente, a soltar, em meio a conversações, várias frases chulas (bastante chulas) em espanhol. Na verdade, a história não é bem sobre Oliver Mulato, mas sobre como Mauro Tule Cornelli, um ex-roteirista de histórias em quadrinhos e, atualmente, escritor, descobre uma ligação misteriosa com Oliver Mulato. Ele é Oliver Mulato, e ao mesmo tempo é Mauro Tule Cornelli. Falar demasiado desta ligação é entregar pontos importantes do livro, então deixarei os detalhes aos curiosos.
É uma pena, neste mundo cotidiano, a inválida produção de quem se arroga o papel de “comentador literário”. Antigamente era suposto que, antes de qualquer “crítica”, o leitor já tivesse lido a obra em questão, de modo que a “crítica” fosse um complemento à leitura, e não, como hoje, uma “propaganda” ou “escracho” de qualquer obra que seja, a partir da qual leitores buscam suas próximas leituras. Mas deixemos a divagação de lado e voltemos à obra, que ela merece, certamente, mais espaço que os choros frustrados.
Mauro Tule Cornelli era roteirista de histórias em quadrinhos. Seu amigo Paulo Schiavino era o desenhista. Ambos eram algo tímidos, então decidem assinar suas histórias com um pseudônimo: Lourenço Mutarelli. O problema é que suas histórias ganham certa projeção e têm de comparecer a eventos e entrevistas, algo que igualmente os intimidava, de modo que contratam um agenciador de jogo-do-bicho, chamado Raimundo Maria Silva (vulgo Mundinho), para “ser” Lourenço Mutarelli nestas ocasiões.
Nesse meio tempo morre Paulo Schiavino. Então Mauro Tule começa a escrever ficção literária e, sob o nome de Lourenço Mutarelli, publica seu primeiro romance:
O Cheiro do Ralo
Os conhecedores de Mutarelli e sua obra conseguem perceber claramente a “piada interna”, já que o autor abandonou há alguns anos as histórias em quadrinhos. Disse não ter, cada vez mais, nenhuma vontade de retornar ao formato (pelas altas horas que este dispende, pelo baixo prestígio e pelo baixo apelo mercadológico, dentre outras razões) e diz que ainda gosta de pintar e desenhar, mas sem fazer disso seu principal ofício. Há também diversas referências e críticas ao mercado editorial brasileiro e conjecturas sobre a glamourização da profissão de escritor
O livro centra sua história pouco após estes acontecimentos. Depois de diversas obras lançadas por Mauro Tule Cornelli como Lourenço Mutarelli, Mauro se sente cansando e frustrado, porque é Raimundo, como Mutarelli, que comparece a eventos, ganha viagens e recebe os louros pelo trabalho de Mauro.
Então Mauro decide lançar um livro com assinatura própria, chamado Uma Ocasião Exterior. Por ser de um autor “desconhecido”, o livro tem saída modesta. É por estes tempos que Mauro recebe uma estranha moeda “o grifo de abdera”, e nesse momento Mauro começa a perceber uma coisa estranha em sua cabeça. Ele começa a notar que não ele é só ele, mas que é, também, outro. Ele é também Oliver. E, interessado em saber se Oliver era também ele (e se sabia disso), começa a investigar e a tentar compreender essa estranha ligação que existe entre os dois.
Infelizmente, sem anterior consciência desta ligação, Mauro estragara a vida de Oliver. Fazendo pesquisa para um livro, Mauro fez pequenas brincadeiras com o Google Tradutor, traduzindo frases absurdas e chulas para o espanhol. E foram estas mesmas frases que, aleatoriamente, saiam da boca de Oliver em momentos impróprios, situação que foi a gota d’água em seu relacionamento e que o fez perder não só a esposa, mas também o emprego, a casa, e a vida social por completo. Os médicos o diagnosticaram com Tourette.
Quando Mauro torna-se ciente da conexão que entre eles há, vigila-se para que não cause mais transtornos na vida de Oliver. Enquanto isso, isolado em uma espécie de cortiço, Oliver vê-se dotado de uma habilidade que jamais teve, a do desenho. Começa então a produzir uma HQ em chamada um dia, por acaso, Mauro e Oliver encontram-se na Presença de Raimundo. Mauro tinha ido lá esclarecer com Raimundo o fato de não publicar mais sob a alcunha de Mutarelli, e Oliver era já conhecido de Raimundo. Oliver era fã de Uma Ocasião Exterior Mauro planejava já outro livro, sobre sua relação com Oliver, que se chamaria O Grifo de Abdera
Um pouco antes deste encontro, Gilda, uma professora colega de Oliver (que é por ele apaixonada) vai visitá-lo no cortiço. Por sua paixão por ele e apiedada de sua condição, resolve levá-lo para morar com ela e a mãe, para que ele possa ter melhores cuidados. E trata-o bem. E cuida-o. Consegue para ele uma vaga no colégio “Fases”, que os professores, entre si, carinhosamente chamam de “Fezes”.
O problema é que, apesar de grato pela ajuda, Oliver não é encantado por Gilda, mas por Marina, professora de gramática do Fases. O que dificulta a relação de Gilda e Oliver…
Dizer mais sobre a história é estragar boas surpresas.
Estabelece-se neste livro uma relação sobremaneira interessante. Há uma dependência dos interesses de todos em torno de Mauro Tule. De uma maneira, que não pormenorizarei para não irritar os leitores mais coléricos com spoilers, Oliver depende de sua relação com Mauro para aproximar-se de Marina; Raimundo depende da produção de Mauro para continuar nas ocasionais benesses de ser Mutarelli; Gilda vê seu futuro entravado com Oliver, tangencialmente, por conta de Mauro, porque Oliver só começa a falar com Marina por conta de Mauro; Paulo desenhava, mas sobre os roteiros de Mauro…
Estruturalmente o livro compõe-se de uma primeira parte com esta história que tenho até aqui tentando narrar, seguida de uma segunda parte onde está encartada a zine de Oliver Mulato, e uma terceira parte com o desfecho geral da obra. A estrutura do livro é toda pensada a partir da perspectiva do narrador, potencializando essa inserção “mental” no percurso da história.
Como eu disse, não vá esperando uma obra exatamente como as anteriores de Mutarelli. Os elementos estão todos lá, mas misturados e calibrados de uma maneira diferente, igualmente interessante, e que faz jus ao autor.O narrador é o próprio Mauro Tule. E ao final trará regozijo entender porque é que, afinal,O Grifo de Abdera foi assinado por “Lourenço Mutarelli” e não por “Mauro Tule Cornelli”.
Um livro de rápido leitura. E no fim das contas “Creo que tiene um cigarro em mi culo, esto es el maíz em la mazorca sabroso em mi cheleca, que desliza para arriba palomitas de maíz
PS: Os interessados procurem no DM online minha coluna sobre um outro livro do autor Nada me Faltará.
(Ian Caetano é estudante de ciências sociais pela UFG)