O amigo na figura do delegado
Redação DM
Publicado em 22 de dezembro de 2015 às 00:35 | Atualizado há 9 anosNo espaço invisível de um tempo infinito,
submersa e encantada há uma Posse impossível.
Nossos antenatos que vieram de outro mundo:
onde estarão guardados seus retratos?
Cadê Fulano? – Partiu.
Cadê Beltrano? – Sumiu.
Cadê Sicrano? – Morreu.
E nossa tribo? – Perdeu-se.
Espírito Santo, Espíritossantozinho,
cuidado com o Capeta que vem no redemoinho.
Renovai a nossa vida dando-nos a vida antiga,
de paz na antiga vila, de fé na pessoa amiga.
Não só eu, mas junto a outras crianças nos sentíamos inseguros e ansiosos quando o delegado se ausentava de nossa cidade. Melhor dizendo, do nosso bairro, da nossa rua, onde o delegado era nosso vizinho. Era um alívio vermos o delegado por vezes retornando de uma pequena viagem.
Sua presença impunha respeito a todos os cidadãos. No fundo era a nossa insegurança tribal e, de minha parte, a orfandade desolada sem a figura do pai ou protetor, representada na pessoa do delegado.
As crianças na minha terra se dividiam em duas tribos. As que viviam na parte baixa e as que viviam na parte alta da cidade. Chamávamos rua de cima e rua de baixo os limites de nosso pequeno universo. Quando um dos territórios era invadido sempre dava brigas.
O jeito era a gente andar enturmado. Do contrário, era bancar o valentão para intimidar nossos rivais, se não quiséssemos botar o rabo entre as pernas e voltar quietinhos para casa quando abordados na rua por algum valentão de outra tribo. Nesse caso, tínhamos que ocultar nosso lado mofino: ninguém deveria ficar sabendo de sua derrota íntima. O melhor mesmo era andar em turma.
A vida era coletiva. Tomar banho de rio. Cada um se medindo pelo tamanho do outro. Ou saber nadar ou afogar-se. Brincar de roda nas noites de lua. Todos no mesmo ritmo dos passos. Brincar de direito-está-vago: revezar os lugares e cada um querendo ocupar o lugar do outro. O outro era o outro lado da gente.
A gente era parte de um todo. O delegado era o guardião do todo. Mesmo sendo o todo dividido em grupos e classes. Guardião também das crianças, mesmo sendo divididas em tribos e turmas. Quando se armava a guerra, todos recorriam ao delegado para restabelecer a paz.
Assim também na cidadela da vida, todos nós precisamos de um delegado. Quando nos sentimos inseguros ou ansiosos, é o delegado que se ausentou de nós. O delegado pode ser nosso vizinho ou nosso amigo mais íntimo. É só ligar e ele nos socorre.
Sua presença em nossa casa ou nossa presença junto a ele é garantia de paz e de alegria. Tendo-o ao nosso lado, ninguém invade nosso espaço existencial. No fundo, cada amigo ou amiga representa para nós a figura do delegado. Que é a nossa segurança nas travessias perigosas da vida.
De minha parte, tenho amigos que são meus delegados. Neste sentido, estão sempre próximos, moram na minha rua espiritual. Quando viajam, deixam certo vazio, até que voltem como anjos da guarda.
São amigos que nos socorrem nas dúvidas existenciais. Amigos que nos acompanham nas ruas da amargura. Amigos que entram conosco nas cavernas de nossas aventuras. Nos becos das nossas interrogações. Amigos que participam conosco do jogo lúdico da vida. Que fazem parte do nosso outro lado. Que vão conosco à guerra ou nos arrebatam para o território da paz.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])