Pilora
Redação DM
Publicado em 14 de dezembro de 2015 às 23:51 | Atualizado há 9 anos– Tá cansaço ou fazendo cara de cansado? – perguntou a mulher de roupão branco.
– Não sei. Os dois – respondeu Cecílio num riso forçado, com o boné torto na cabeça, continuando a deixar os pensamentos se perderem no pinga-pinga do soro.
Não haveria lição no sofrimento não fosse esse tão enfadonho. Reavaliar tardiamente os próprios feitos tornam solúveis as memórias, e do contrário, faz-se aço. Dependendo o caminho, durante o percurso de um homem, pode haver ornamento de espinho ou bloqueio de flores. Depende. Mas depende do quê? De tudo.
Cecílio, o Pilora, saía cedo para máquina de beneficiar arroz, onde carregava o peso de sua existência na cabeça. Era chapa. Pescoço magro e forte. Quem o via, não dava nada pela figura franzina, mas quando metia um saco de arroz na cabeça, carregava como se carregasse espuma.
– Aprendam o simples. O simples. Porque o simples levará vocês ao desafio do complicado. Não há soluções das complicações sem o aprendizado das simplicidades – dizia-lhe a professora Pereira, depois de assisti-lo pintar de giz de cera um mapinha do Brasil, décadas antes.
Não bastava querer apenas suportar as dores diárias melhorando-se para os outros. Urgia superá-las com a busca do melhor de si para si. Mas a teoria pela teoria é meio caminho para se reduzir intenções a esquecimento. Vida não é só teoria. Teoria metafórica: Pilora se perderia numa selva criada por ele. Realidade: Pilora tornar-se-ia alcoólatra.
As primeiras doses de cachaça, uma mera diversão na casa do vizinho. Só farra no turbilhão da tontura, entre mãos de truco com tira-gosto de lambari frito. E pensar que anos antes, quando menino, a pelota rolando na fazendinha: ele era o mais habilidoso de todos, um coelho. Com a bola no pé, fazia o regaço. Todavia dava raiva às vezes, já que o danado não gostava de passar a bola.
– Ah, não Pilora! Toca a bola, poxa!
– Achei que cê ia passar! – justificava ele.
Um tempo carregado de “se”. Se Pilora passasse mais a bola, o time dele ganharia fácil. Se Pilora não enveredasse tão intensamente para lado da bebida anos mais tarde, ainda estaria entre nós. É, ele não está mais entre nós, e o que dele ficou, as lembranças, resplandecem como mosaicos, em partes, como este texto. Louvemos a memória da forma que dá. Pelas ruas da pequena cidade, ainda existem sombras das lembranças de Pilora, que de agora em diante novamente volta a se chamar Cecílio.
Na calçada da máquina, a mesma máquina de beneficiar arroz onde futuramente ele viria a trabalhar, Cecílio, aos quatorze anos, era o mais esperto dos meninos que ali se reuniam para brincar todas as noites. Em uma brincadeira daquela época, o “garrafão”, um dia ele arrancou o tampo do dedão. Todos pensaram que ele sairia. Correu até sua casa e apareceu com um retalho de pano xadrez amarrado ao dedo. E continuava ligeiro, ou até mais do que o começo da brincadeira.
Como princípio do abalo de seu mundo, Cecílio vira a mãe se enveredar para o território viciante. Muitos, ainda hoje, se lembram dela – uma mulher miudinha, a exemplo dele, de força tamanha – passando com feixes e feixes de lenha, descendo a rua de cascalho. Calculava-se que o peso que trazia fosse maior que o seu próprio peso. Mas passava segura, imponente, embora sua postura desse a impressão de que a qualquer momento iria deixar tudo vir abaixo. Porém não, isso nunca ocorreu. Cecílio, quando pequeno, fora visto inúmeras vezes passar junto com ela com um feche menor, uns cinco ou seis gravetos amarrados de barbante mesmo. E iam, uma, duas, três viagens de lenha. Depois que ele cresceu, ela fazia a tarefa sozinha.
– É um embalo a vida! – comentava a enfermeira.
– É, deixei o corpo ir ladeira a baixo! – ele emendava, depois de um apressado suspiro.
Nos derradeiros minutos, alguns sussurros desconexos deflagravam algumas lembranças. Cecílio não aguentaria a falta da mãe, que havia morrido pelo mesmo problema dele: complicação hepática. Mais de uma garrafa por dia nos seus últimos dias, tanto ela quanto ele. E a enfermeira bondosa, de roupão branco, de mãos com gestos suaves, tentava harmonizar o semblante desfigurado e pesado de Cecílio.
– Cansado ou cara de cansado?
Nada amortecia a queda. Ao ser liberado do hospital, voltava a invernar na bebida. O que antes fazia com amigos, no truco, petiscando lambari frito, agora fazia sozinho em casa, sentindo a forte dor da ausência da mãe. Deixou de trabalhar. Alguns amigos iam visitá-lo, porém nada o fazia regressar à normalidade da rotina.
A professora Pereira tinha razão. Num dos flashes que se restabelecia em sua memória, ela dizia com o semblante seguro:
– A fase dos problemas nas nossas vidas requer nossa inteira dedicação para superá-los…
– Sei não, professora. Sei não. Será? – cochichava para si.
O festejar que se esvai nos repuxos dos cantos da boca seca. Uma correnteza que leva à enchente, que, sem vazão, inundava os espaços da vida. A água, depois de represada, apodrecia, no âmago, as ligas que tencionam o ímpeto de viver. E a vida de Cecílio, o Pilora, submersa em por-fazeres e fazeres-exagerados, foi fatalmente inundada.
Antes de completar trinta anos, foi encontrado sem vida em sua casa, em meio a garrafas de cachaça vazias e objetos que pertenceram a sua mãe.
(Hailton Correa, graduado em Letras pela UEG de Inhumas, agente prisional e escritor – E-mail: [email protected])