Brigas de um capitalista racista
Redação DM
Publicado em 27 de novembro de 2015 às 22:51 | Atualizado há 10 anosQuando tinha seis anos, me envolvi na minha primeira briga. Estava voltando da escola, que era bem próxima da minha casa, com um amigo meu que não consigo recordar o nome. Ele estava com medo, havia sido ameaçado com o famoso “te pego na saída” por um dos meninos da minha turma, que também já havia usado de tais artefatos comigo. Tentava acalmá-lo, tentando convencê-lo de que nada iria acontecer. É claro que eu não acreditava naquilo, e provavelmente estava mais temeroso que ele, eu era muito mais excluído e desprezado. Ele era a única verdadeira âncora que me convencia a acreditar que não tinha motivos para me sentir mal: minha boca fechada, meu carinho pelas professoras, ou até mesmo o fato de me sair bem em Matemática e “Ciências Sociais”, não eram motivos suficientes para permitir que sentissem tal escárnio por mim. Era idiotice deles, não nossa. E ele compadecia e compartilhava de tais dificuldades e opiniões, só que em um grau muito mais ameno.
Enfim, o tal do menino apareceu já arremessando ofensas. “Eae pretinho, vai encarar?” Meu amigo, negro, deu um passo para trás e abaixou a cabeça. Seu olho estava marejado, e ele sussurrava baixinho “por favor, deixa eu ir embora”. O jamanta, como vou chama-lo por ora, continuava: “Te deixar ir embora? Eu te disse que ia te dar um pau na saída, e é isso que vou fazer. Seu pretinho da raça ruim.” Não tenho certeza se foi nesse momento em que me envolvi, não me recordo de mais nada a partir disso. Minha mãe conta que ouviu gritaria, e me encontrou rolando na grama aos tapas com o menino, que tinha quase o dobro do meu tamanho. Fiquei sujo e com alguns hematomas, com participação especial da minha mãe (que ficou tremendamente arrependida quando expliquei o que havia acontecido).
O que eu acho mais interessante dessa memória, é quando eu toco ela na cabeça. Lembro de algumas partes do diálogo, da carinha dele com medo, da sua personalidade acanhada e tímida, parecida um pouco com a minha. Mas a cor dele só me vem à mente, quando escuto o Jamanta falando. O que isso significa? Provavelmente nada. Mas talvez, na cabeça do Matheus pequeno, a distinção de cor não fosse algo relevante para marcar a lembrança. Acho que a cabeça do Matheus criança achava a possível distinção até ofensiva, já que me envolvi em uma briga para defender um amigo disso.
Acredite, eu tinha todos os motivos para não pensar assim: minha bisa era viva, extremamente e absolutamente racista. Ironicamente, eu a chamava de “vovó branca”, já que tinha a pele, o cabelo e, na maioria das vezes, a roupa nesse mesmo tom. Ela proferia os preconceitos em tom de ignorância, de quem não entende das coisas: “Se você sair de casa e a primeira coisa que ver for um preto, pode voltar que algo de ruim vai te acontecer.” Ela criara minha avó, meus tios e minha mãe. Então, eles carregavam essas visões com eles, de alguma forma, e acho que isso poderia ter tido alguma influência na forma como eu pensava, mas no final das contas, não foi isso que aconteceu.
Depois que mudei de cidade, achei que as coisas seriam diferentes. Talvez na Bahia, onde as pessoas eram calmas e felizes, eu poderia me inserir nos grupos, não sofreria com pessoas me excluindo e me diminuindo. É claro que a realidade foi muito… muito diferente, e eu sofri como nunca antes.
Na terceira série, a turma que entrei quando cheguei lá, eu não era permitido de fazer educação física com os meninos, porque não era bom em nada. Os meninos escolhiam e dividiam os times, e fingiam que eu não estava lá. (O pior, é que não me lembro de ser tão ruim assim. Acho que era pura e simples implicância.) O professor acabou apoiando a decisão, me colocou para jogar com as meninas, que mais enojadas comigo do que os outros, tomaram a mesma decisão de me ignorar. Então, ia para biblioteca e conversava com a moça que trabalhava lá. Era um pouco deprimente, acho, porque nessa época eu não tinha ninguém mesmo. As pessoas que eu conhecia da Vila da Aeronáutica onde eu morava, fingiam que eu não existia na escola, como se eu os envergonhasse. E cara, de verdade, eu nunca entendi e nunca vou entender o porquê disso tudo. Eu era um menino legal, eu não era maldoso, era quieto e fazia tudo para ser aceito.
Mas era simples e reconhecido por todos, a simples visão do Matheus gerava motivos de chacotas ou de afastamento.
Os únicos quase amigos que tive nessa época, eram da Vila, e eram extremamente bipolares. Eles gostavam de mim as vezes, me chamavam para brincar e pareciam querer mais da minha companhia. Mas, de uma hora para outra, algum menino mais velho os convencia de que deveriam ficar longe de mim, ou me excluir por pura diversão. E eles faziam isso todas as vezes, e eu ficava muito triste, chorava, me sentia a pior pessoa do universo.
Depois de um ano lá, me envolvi na minha segunda briga. Eu, deprimente como era, estava observando os meninos brincando de longe, tentando mostrar que eu estava ali e disposto a esquecer tudo que fizeram, se dessem um lugarzinho para ser felizes com eles. Acontece que nesse dia em especial, eles me chamaram. Não porque queriam. Eles iam brincar de Polícia e Ladrão, e o número era ímpar: não queriam que ficasse desigual. Depois dos devidos pares e ímpares, aconteceu a escolha dos membros de cada time. É bem claro que eu fiquei por último, mas eu não estava me importando. O líder do time, ao contrário, achou a obrigação de ficar comigo um absurdo. “Ele é praticamente café com leite, não sabe fazer nada”, ele tentava argumentar. Resumo da ópera: perdemos por culpa minha. Lembro de estar caído no chão, com parte da minha camisa rasgada, enquanto uns quatro meninos do time me chutavam. Eu tentei resistir e brigar com eles… mas é claro que não podia lidar com todos. Cheguei em casa machucado, com o lábio estourado, minha mãe chorou comigo.
Esse tipo de situação foi bem comum durante esse ano, apanhava regularmente, por motivos banais: desde não conseguir defender uma bola no gol, ou por pura falta do que fazer. Como eu disse: eu era deprimente, implorava por aceitação, e não tinha amor próprio. Mesmo que eles fizessem tudo o que faziam, eu ainda gostava deles. Achava que o errado era eu, que era esquisito, tinha gostos estranhos e não parecia me encaixar.
A memória mais vívida que tenho dessa época foi da minha terceira briga (estou considerando “briga” como sendo as vezes que tentei resistir. As que eu só apanhei, não contam). Pique esconde, esbarrão, murros. Eu contra outro, as chances eram boas. Ele era mais novo que eu, tinha uns 10 cm a menos, era minha chance de provar que não era tão bobo como eles acreditavam que eu era. Incorporei a personalidade de brutamontes jamanta imbecil deles e comecei a xingá-lo e empurrar. Ele estava claramente com medo, mas não recuou. Eu não tive coragem de bater nele, ele me bateu. Quando eu estava no chão sangrando, derrotado, ele mijou muito em cima de mim. Uma urina grossa, amarelada e fedida. Fazia um ano que ele não ia a escola, porque estava com tuberculose. Todos ao redor estavam vendo, só olharam e não interferiram, rindo de rolarem no chão. No fim, foram embora e me deixaram ali. Manquei para casa, minha mãe chorou comigo.
Esse menino em específico, da urina e da tuberculose, foi o que mais sofri. Ele me batia muito, e era muito mais novo e menor que eu. Era uma humilhação sem tamanho. E depois da primeira briga com ele, e da covardia que eu descobri ter, eu não ousava a resistir. Então era simples bullying mesmo, ele chegava perto de mim, me dava uns murros, e saia dando risadas com os amigos.
Mas, uma vez, tive coragem de resistir. Minha quarta briga. Estavam todos os meninos da vila, todos eles assistindo. Senti um ódio fora do comum, com as humilhações que ele me causava, e parti para cima dele. No final das contas, o espanquei muito. Dei tantos murros na cara, que ele ficou com o rosto deformado e teve que ser levado para casa carregado e levado no hospital. Não me orgulhei disso um minuto, e quando cheguei em casa, chorei com a minha mãe.
As consequências disso, toda via, não foram muito negativas. Minha mãe já havia reclamado com os pais dele sobre ele me bater, e todos sabiam que eu sofria com isso, então todo mundo meio que considerou como perdão para a “justiça”. Os meninos começaram a me dar espaço e eu comecei a ser mais respeitado. Engraçado né? Quase como se fôssemos animais. Só tive espaço no “bando” quando bati naquele que parecia ser o mais forte
Não vou contar isso por masturbação egocêntrica nem nada disso. Mas depois que fui “aceito”, o outro menino foi excluído. Ele era ignorado, não escolhido nas oportunidades que tínhamos, e tinha um medo terrível de mim. Mas eu não conseguia lidar com aquilo tudo, e me afastei dos meninos para ficar amigo dele. Pedi desculpa, começamos a se aproximar e eles se tornou um dos únicos verdadeiros amigos que tive em Porto Seguro, e foi o que, inicialmente, mais me fez sofrer. Ele me defendeu quando outros tentaram me atacar, ele esteve comigo quando ninguém mais esteve. E eu o ajudei a entender as coisas, principalmente em relação ao certo e o errado. Seus pais eram extremamente negligentes, ele quase morreu com a tuberculose e simplesmente não havia sido educado, jogado no mundo para entender o impossível. Quando paro para lembrar dele, me lembro do tanto que rimos juntos, do tanto que a gente se ajudou e da forma “cruel” como ele vias as coisas. Ah, ele era negro, detalhe que nunca me parece importante para lembrar.
Nos quatros anos que passei lá, não houve um dia em que eu não sofresse por discriminação e por ódio gratuito. Tive um ou outro amigo, é claro, mas acho que o balanço geral é bem negativo.
Continuei no Nordeste na próxima mudança, partindo para um lugar mais paradisíaco… Fernando de Noronha. Ilha de paisagens, felicidade e sossego. É claro que eu iria aproveitar tudo isso, né? Seria feliz finalmente, todo mundo iria me amar e eu não seria odiado só por ter a cara que eu tinha, a voz, o jeito, o seja lá a porra que as pessoas não gostavam sobre mim.
Só que não, obviamente. No auge do bullyng, era conhecido como o “Mongol King”. E isso, por mais que seja extremamente horrível e pejorativo, mostra também a melhor parte da coisa: se eu era rei, tinha que ter um grupo! E eu tinha, tive amigos, todos retardados, excluídos e discriminados. Eles também gostavam do Batman, de Metal, de RPG, de histórias, não assistiam filmes dublados! Ficamos juntos o tempo todo e superamos todas as situações, e eu não me senti tão mal como antes. Beijei pela primeira vez, me apaixonei e foi uma época ótima, apesar de tudo. Ah, o detalhe esquecido: mais da metade dos meus amigos eram negros e quase todas as meninas que eu gostava eram negras.
Depois que fui embora, e voltei para o “centro” do País, as coisas melhoraram. Perdi as espinhas, dei uma crescida e desenvolvi tanto o amor próprio que passei a ser taxado de arrogante. Namorei pela primeira vez (negra), conheci o melhor amigo da minha vida (negro) e vi minha irmã crescer e se tornar uma moça (negra). Eu parei de sofrer quando me convenci de que eu, Matheus, não era o errado. E isso é muito importante, para qualquer um que seja discriminado. Eu sei que na prática é muito difícil de aplicar, mas quando finalmente você consegue, o sentimento de alívio é indescritível.
Passei por outras situações de briga, conflito e discriminação depois disso. Na maioria das vezes, por não me encaixar no que a maioria gosta (o que hoje, ironicamente, é o que a maioria gosta). Passei a ter amigos de verdade, me sentir inserido em grupos, e deixei de ser sozinho (apesar de tudo. Os detalhes dessa época prefiro não contar). As brigas foram só de boca… braços e pernas nunca mais foram usados.
Qual ao ponto de toda essa história? Vou responder contando mais histórias.
Meu pai é economista. Estudou Economia e vive debruçado em notícias e discussões sobre o assunto. Então, sempre fiquei muito “dentro” dessa dinâmica de pensamento. Nas eleições de 2010, há somente 5 anos atrás, me tornei politizado. Me envolvi com as Discussões de Dilma vs Serra. E eu, com meu pai conservador e tucano, desprezei a Dilma e apoiei com todas as forças o Serra. Eu, pessoalmente, não gostava muito dele… mas gostava menos dela, então fazia o possível para me mostrar contra. Me envolvi com discussões com professores e tudo mais. E falando superficialmente assim, parece que era meio bobo a forma como eu lidava com a coisa, mas não era. Eu lia, estudava, pensava tudo sobre o assunto. Sentia orgulhoso de mim mesmo por estar correndo atrás e estudando. Era bem construído o meu pensamento, eu acho.
Enfim, acabei por escolher estudar Economia, como meu pai. Me apaixonei pelo curso e pelo pensamento da ciência econômica. Me posicionei politicamente em posições diferentes do meu pai, entrando em áreas mais do “liberal” e do “capitalista”, desistindo de ideias conservadoras e estadistas.
Estudei muito desde então, mais do que posso explicar. Li, superficialmente, livros de todas as camadas de pensamento político-econômico. Li Marx, li Ricardo, Li Malthus, li Keynes, li Mises, li Hayek, li Smith, li de tudo. Gostava de política também, então li os clássicos da filosofia.
Sempre gostei muito de história, então tudo que eu li tinha um embasamento histórico por trás, encaixado em uma perspectiva específica. Discuti com amigos de esquerda, que mudaram de opinião, ouvi argumentos de amigos de esquerda, que também me fizeram rever muitas das minhas.
Passei a ser abertamente a favor da legalização das drogas, da descriminalização do aborto, dos direitos dos homossexuais, contra a religião ter controle sobre o estado. Passei a adotar a melhor postura de tolerância com pluralidade de ideias e visões contrárias. Discuti, ensinei, escutei. Fiz o possível para aprender mais, ser mais sensato e saber como argumentar. Como gosto de dizer, a única que coisa que eu sempre desejei, e ainda desejo, é largar de ser “besta”.
Pois, chegamos na atualidade. No dia 25 de novembro de 2015, as 22:05. Eu trabalho no Diário da Manhã, apesar de ainda estar envolvido com Economia, larguei o curso. Hoje, sou jornalista. E como todas as coisas que me construíram no decorrer da minha vida, e as brigas que me fizeram ser diferente, hoje me vejo em um cenário de guerra burra, intolerante e irracional.
Tente fazer as contas, baseado no que você leu aqui sobre mim. Por ser de classe média, favorecido por minha classe e cor, você acha que nunca sofri discriminação e não posso falar e discutir sobre o assunto? Eu não posso falar a favor dos negros? Eu não posso estar do lado deles? Eu sou contraditório por ser capitalista e não-racista? Eu posso acreditar na economia de mercado e ser a favor dos direitos das mulheres? Posso ser a favor da liberalização do porte de arma e a favor nos direitos dos homossexuais? Eu sou branco, isso me faz racista? Eu sou heterossexual, isso me faz homofóbico? Eu sou liberal e capitalista, isso me faz a favor da pobreza e da vitória dos ricos sobre os pobres?
De acordo com todos que me cercam, não. Eu sou homofóbico, racista, elitista, tucano, tenho uma “indignação seletiva”, sou uma pessoa horrível que ama a guerra, a destruição da palestina, amo o Bolsomito, apoio a Vale pelo desastre e acredito que o Senado tem que ser religioso. Eu odeio pretos e nunca estudei História!
Mas no final das contas, e na realidade mesmo, eu sou uma pessoa super dócil e covarde. Que gosta de todo mundo e tenta não ver o lado negativo das pessoas. Que nunca se importou com a cor, com credo religioso ou opção sexual. Que nunca considerou posicionamento político suficiente para definir caráter. Que se preocupa com o progresso, que não suporta pobreza ou discriminação. Que quer saúde, segurança e educação da mesma forma que todo mundo. Que acredita que pena de morte não é solução, que acredita que a Guerra contra as drogas está falida.
Eu só não vejo os caminhos da mesma forma que vocês. Eu não vejo as soluções, e as “problematizações” com os mesmos olhos. E por mais que eu, Matheus, não enxergue isso como um empecilho para me aproximar e amar as pessoas, estou sentindo, pela primeira vez, que tenho uma característica concreta que faz as pessoas me desprezarem. Simplesmente porque estudei economia e por acreditar no capitalismo.
Me sinto na minha adolescência de novo. Já consigo sentir as joelhadas no estômago, as risadas pelas costas e o dedo na cara. Quem será o primeiro a me bater?
(Matheus Cruvinel, editor de Economia do Diário da Manhã)