Cultura

Poesias daqui de dentro

Redação DM

Publicado em 23 de outubro de 2015 às 21:37 | Atualizado há 8 meses

 

Um poeta é um fotografo, em alguns casos. Fica sobre sua responsabilidade registrar um momento que a sociedade vive através das lentes lúdicas da caneta. Pensando nisso, escolhemos alguns poemas de alguns poetas de Goiânia para esta edição. Uma forma de demonstrar cada período da nossa cidade e também de apresentar a poesia maior que temos por aqui. Degustem.

História

Toda história tem seu texto

tem seu pretexto e pronúncia.

Tem seu remorso, seu sexto

sentido de arte e denúncia.

Tem um sujeito que a escolhe

que se encolhe e se confunde:

um lugar que sempre a tolhe

qui tollis peccata mundi.

Tem sua forma em processo,

tem seu recesso e cansaço,

e tem seu topo de excesso

no ponto extremo do escasso.

Tem sua língua felpuda,

a voz aguda e afetada.

R tem a essência que muda

e permanece, calada.

Toda história tem seu preço,

tem seu começo e seu dito.

É só virar pelo avesso,

ler o que está subscrito.

Gilberto Medonça Teles

A mulher que quero

Eu quero uma mulher de aço

que seja leve como a pena,

cujo sorriso seja um laço

a me prender como um poema.

Eu quero uma mulher madura

a me guiar durante o dia,

quando for noite ser vadia

a me domar sem armadura

e a me tomar como num sonho,

uma mulher que seja a lua

dentro do sol em que me ponho.

Eu quero uma mulher de ferro

com um aplauso pra quando acerto

e um perdão pra quando erro,

como alguém que seja o brilho

dentro do escuro em que me encerro.

Uma mulher que seja plena

uma amante de verdade

que seja motivo de lembrança

e um intervalo na saudade

que, diurna, me cuida,

mas que, noturna me invade.

Eu quero uma mulher-mãe

que seja vinho, cerveja,

refrigerante, champanhe,

que me entenda se viajo

e se fico me acompanhe.

Eu quero uma mulher toda

que me edifique como homem

e algo depois me exploda.

Pio Vargas

Músculos do Vento

O vento bole na flauta

Sua corda vocal

Imprime fruto na florada

Em seu passeio matinal

Esculpe na pedra a face

E na face a pedra final.

Todo vento

É sobejo

Do sopro seminal

Nas narinas do fantoche.

Vento! Vento!

Cigano dos tempos,

Leva a semente do instante

Para o horizonte mais remoto.

O amanhã

(fascinante) é face nova

A ser esculpida

Ao comando de seu toque.

Edival Lourenço

Toada goiana

Correr chapadas e serras

cobertas de casimira.

As noites que lá se foram

voltam dançando, e a catira

que se escuta sempre longe

é doce – ainda que fira.

O vento dá na roseira,

mas meu bem, ninguém me tira.

Quem ama, reclama e chora,

canta e suspira.

As muitas matas, as muitas

solidões … que amor as planta?

Quero bem a uma menina

que vê-la é ver uma santa.

Deixei-a, vim correr mundo.

Agora tenho a garganta

atravessada do espinho

desta saudade que é tanta.

Quem ama, chora e suspira,

reclama e canta.

Poeira em giros vermelhos,

e o tempo já foi de lama.

Sete cravos, sete rosas –

é pouco para quem ama.

Sete cartas de lembrança –

e a ingrata, que não me chama!

Faço fé que ainda me lembra,

pois sou goiano de fama.

Quem ama, suspira e canta,

chora e reclama.

O vento vem, dá na vida.

Mas a terra – é em mim que mora.

Passarinho no coqueiro,

do meu bem fala-me agora:

se está morto, se está vivo,

se casou, se foi embora.

Vem a seca … Vêm as águas …

E a resposta já demora.

Quem ama, canta e reclama,

suspira e chora.

Afonso Felix de Souza

Poema vertical

Dei um mergulho em mim mesmo, num pulo de cabeça a baixo.

Tudo lá no fundo está quieto como os caminhos abandonados;

a paisagem esfumou-se e confundiu-se num apaziguamento de cansaço.

Perdi-me nos atalhos sedutores,

gastei linhas retas e curvas, inquietações e deslumbramentos.

De místicas visões e amargos projetos fiz um montão de cadáveres.

Quanto trabalho perdido,

quanto tempo dissipado!

Mas de tudo que ajuntei

na mais lírica desordem,

alguma coisa houve de ficar, alguma coisa que às vezes se resolve em minha poesia ou em silêncio.

José Décio Filho

Poema Bissexto

Num ano não bissexto

de meses absurdos

e de horas escritas,

o teu dia não existe,

o teu dia absoluto.

Hoje é a véspera, mas amanhã acabou.

Agora, é cedo ainda

pra eu ir cantar na tua porta,

mas amanhã, é tarde, Inês é morta.

Uma interrogação escorre luminosa

sobre o imponderável

do teu dia não-dia,

mas eu dou uma rosa

pro teu dia não-dia,

ante-dia,

adversus,

carpe-diem.

No teu ante-aniversário

que não fazes este ano

porque amanhã é primeiro,

não será mais fevereiro,

quisera ver o teu rosto:

a face triste do baiano

e o riso largo do mineiro.

Perdido nas estrelas

de um zodíaco azul

ficou teu dia

nadando, peixenauta,

pelo espaço,

— olhando para o céu é que te abraço

enquanto estabilizas tua idade

de sempre criança,

de sem gravidade.

E nem temos taças para o ritual,

nem temos a nós mesmos

(dançamos um longínquo carnaval)

nem tenho teus braços

que o vento, que o tempo,

que a nave levou.

Mas um vidro parco

ou acrílico largo

tilinta: trim!

A festa acabou.

Yêda Schmaltz

Toque de Flauta

Um velho tonel de vinho

é o que tenho,

ali debaixo do pessegueiro florido,

na vesperal animosidade.

Por isso, assim, este beber

e não tocar-me, se é flauta o que me toca,

quando me toca esta saudade.

Eu sinto, ouço, vislumbro nos aros

da tempestade: é longo este soar de sinos,

quando meu amor lá longe já morreu.

Quem foi que tanto me buscou e me perdeu?

Não sei. Sei apenas

que todo buscar

(adaga/florferida)

é um sarilho arrastando a Vida.

Todo buscar faz de seu achado

alguma antiga e perdida ternura.

Portanto, me busco

e não me acho,

por tanto achado

e pouca procura.

Que sou?

a que vim?

Que amor terá de mim o sangue,

a libido, a navalha e sua ferrugem,

se meus lábios

(sempre tardos)

nunca insurgem?

Confesso: um cavalo de ouro trota, agora,

no epidérmico jardim de minha pele,

o rúbido bouquet de orquídeas

entre os dentes de alvura acetinada.

Relincha em ouro este cavalo

que enfim no meu peito empina, escoiceia,

bate os cascos contra as pedras

da enorme solidão: de amor,

quantas léguas tem meu coração?

Um velho tonel de vinho

é só o que tenho,

enquanto – na paisagem embriagada –

toco o soluço de uma flauta esmagada.

Por isso, então, nunca beber-me

aquele amor distante,

nunca querer-me a pessoa amada!

Delermando Vieira


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