Rose
Redação DM
Publicado em 16 de outubro de 2015 às 22:24 | Atualizado há 10 anosDevia ser duas da madrugada, e eu escrevia algumas páginas, mergulhado na reflexão e no som da música que tomava conta do ambiente, quando uma jovem loura e aeriforme entra na minha sala, toma assento e explica:
– Você não me conhece. Moro nesta cidade, sou de família tradicional e respeitável. Estou grávida e meus pais me expulsaram de casa. Pretendo abortar o filho de alguns meses, mas diante dessa ideia, mandaram-me falar com a sua experiência de homem cristão…
Depois que ela me disse isto, minha mente que estava em desdobramento – em transe, como queiram – reajustou-se novamente no casulo físico e passei a registrar aquela presença mais pela percepção extrassensorial, quando então fiquei sabendo de mais, num longo tête-à-tête com ela:
– O pai da criança é homem rico em Goiânia e disse que pagará o médico para fazer o aborto.
Quero esclarecer aos leitores que, a esta altura dos acontecimentos, eu conversava com o espírito da jovem, enquanto seu corpo dormia, nalguma residência na cidade.
Discordei da ideia do aborto, falei-lhe dos inconvenientes dessa atitude e a estimulei a assumir a responsabilidade, principalmente porque o pai da criança já havia tirado o “corpo fora”. “A criança está gerada, deve nascer.” Fui claro, no meu pessoal modo de pensar.
– Sei que enfrentarei muitas dificuldades…
– Mas não deve desistir.
– Não o farei. Confiada em Deus.
– Em Deus. Como se chama?
– Não o direi. Você rirá do meu nome. Portanto pode me chamar apenas de Rose.
– Por que rirei do seu verdadeiro nome?
– Todo mundo ri. Você não seria diferente.
– Agora, sim. Fiquei curioso… vamos, conte!
– Promete não rir?
– Ora, fale!
– Roselina.
– É que você não sabe o estribilho que diz “da perna grossa e a outra fina”…
– Ah! Ah! Ah! Ah!
– Viu só? Eu sabia! Bem que me avisaram…
– Avisaram o quê?
– Que você era impossível! Que não deixaria passar uma!…
– Importa com isso não Rose! Você agora vai ser mãe.
– Mãe solteira.
– Não faz mal: há muitos casados que parecem solteiros e muitos solteiros que parecem casados… mas, conte comigo, Rose…
– Eu contarei… – e sumiu.
– Não foi esse papear com a Rose “em espírito” que me fizera perder o fio da meada quanto ao que eu estava escrevendo, pois o diálogo tivera a celeridade de um a dois minutos, em razão de ter realizado em condições transcendentais. Terminei o meu artigo e fui deitar-me.
Quando acordei eram nove horas de belo domingo de sol; após a higiene de hábito, fui para o escritório folhear os jornais do dia, mas em seguida uma das minhas crianças vem avisar-me de que uma moça queria falar comigo. Contrariado porque seria interrompido na minha leitura, respondi à menina, em tom aborrecido:
– Peça-a o favor de entrar.
Entra a visitante e me chama a atenção com o seu “oi!” moderninho; ao vê-la, reconheço-a de pronto. Fico surpreso e alegre:
– Olá Rose.
– Como? Você já sabe o meu nome?
– Você não disse à menina?
– É… talvez…
– Sente-se. Qual é o problema e em que posso servi-la?
– “Sabe, moro nesta cidade, sou de tradicional família”…
E por aí foi repetindo tudo o que, em espírito, já me havia dito; pasmado, eu a tudo ouvia, estudando os detalhes daquele inusitado acontecimento. Relatou-me tudo e repeti-lhe as minhas ideias totalmente contrárias ao aborto, pedi-lhe que assumisse a maternidade, que enfrentasse os transtornos, perdoasse o rigorismo dos pais e irmãos, que não se importasse com o ricaço de Goiânia, pai de sua criança, homem que, na hora difícil, fugia ao bom senso e pretendia encobrir sua irresponsabilidade com as pazadas dos cifrões; depois de tudo, repetiu-se a descontração, pois ela disse:
– Sei que enfrentarei muitas dificuldades…
– Mas não deve desistir…
– Não o farei, confiada em Deus e na ajuda que você me prometeu…
– Confie em Deus, Rose. Só nele. A propósito, qual é o seu verdadeiro nome?
– É Rose.
– Penso que não…
– Por quê?
– É nome burguês e…
– Ah, mas se eu disser o meu nome…
– O que tem, eu riria?
– E muito! Como sabe? Tenho jeito de caipira ou coisa assim? Você é jocoso, já me falaram, zomba e brinca muito; não lhe direi o meu nome…
E levantou-se sorridente, ajeitando a alça da bolsa no ombro, fumando um cigarro que acabara de acender.
– Foi muito bom ouvir suas considerações sobre aborto, pois assim saberei o que devo fazer. Tchau viu? E se retirava quando a interrompi para entregar-lhe o isqueiro que estava ficando esquecido na poltrona que usara:
– Roselina! Chamei-a sem qualquer intenção de brincar, por pura distração; e ela voltando-se com belo sorriso:
– Eu sabia! Alguém deve ter lhe falado de mim! Recebeu o isqueiro que eu lhe estendia, enquanto falava saindo:
– Tomara que não tenham lhe ensinado o estribilho.
E eu, agora chistosamente.
– Não Rose. Você tem as pernas perfeitas.
Mais outra virada nos calcanhares, fitando-me, olhos arregalados.
– Tchau mesmo, hein? Acenou e se foi.
Voltei à minha cadeira, estiquei as pernas sobre a mesa e fiquei a reflexionar o quanto supondo saber alguma coisa, ainda não sabemos nada…
Quando os corpos adormecem nos leitos, acalentados pelo universo da noite que liberta, as almas deixam seus casulos e buscam seus ambientes e meios, suas fugas e arroubos, suas aspirações e anelos; reencontram almas queridas, lutam, trabalham, sofrem, amam, vencem, caem, fortalecem, estudam, servem, aprendem – e a vida prossegue intensa, sempre linda, sempre nova, sempre eterna.
(Iron Junqueira, escritor)