Opinião

Folclore regional

Redação DM

Publicado em 15 de outubro de 2015 às 00:37 | Atualizado há 10 anos

Colocaríamos os mitos correntes no vão do Paranã dentro da jurisdição do Romãozinho, que começa desde o Vale do São Francisco, na região de Januária, em Minas, atravessa a Bahia e se estende pelo nordeste e leste goiano até as proximidades do Distrito Federal.

A versão é mais ou menos comum em toda a região. Dizem que o Romãozinho era um menino travesso. Certo dia foi levar comida para o pai na roça e, pelo caminho, comeu toda a carne, deixando apenas os ossos. Diante da reclamação do pai, pôs a culpa em sua mãe. O pai que esperava cansado e com fome, recebendo aquela comida que só continha ossos, ficou indignado, voltou a casa e espancou sua mulher até que ela morreu vomitando sangue. Esta jogou uma praga no filho para que ficasse no mundo perseguindo as criaturas como um ser diabólico. Transformou-se num monstro invisível, cara de gente e corpo de jumento, mas consta que tem um rosto muito lindo. Diz que certa vez uma moça viu apenas sua mão e ficou encantada.

O Romãozinho faz todo tipo de peripécias e estripulias. Joga pedras nos telhados, derruba e quebra os objetos, apaga o fogo, cospe e suja nas panelas, faz coisas do diabo. Contar essa estória para as crianças era uma forma de educá-las para serem bem comportadas, cumprir suas obrigações, guardar respeito aos pais, serem solidárias aprendendo a dividir o pão e, sobretudo, não mentir, porque a mentira pode ser desastrosa (como no caso do marido que foi induzido a assassinar a esposa).

Dir-se-ia que com a atual invasão barbárica e o inchamento das cidades do vão do Paranã, principalmente Posse, o Romãozinho (no caso simbolizando a desordem social), anda desembestado, invadindo casas, roubando e matando, comendo a carne e deixando as donas de casa a roer os ossos, quando não invade áreas de terra em práticas de grilagem nos limites de Goiás com a Bahia.

 

A lenda do Pé-de-garrafa

O Pé-de-garrafa parece uma versão local do Romãozinho, uma espécie de preposto que antecipa as estripulias do seu chefe. É descrito como um homem gigante que tem o pé redondo em forma de garrafa. (Nada a ver com os retirantes de Graciliano Ramos).

Contam que em Posse, numa noite chuvosa, ouviram-se gritos pavorosos. Na manhã seguinte, em vários pontos da cidade, sobre a areia lavada (era um areial branco como praia), constataram que havia rastros do Pé-de-garrafa. Como na época não havia ladrões, recorria-se ao padre e não à polícia, para registrar a ocorrência.

 

De onde veio o Lobisomem?

O Lobisomem vem de longe, de antigas civilizações. Segundo Camara Cascudo (Geografia dos mitos brasileiros, 1983), o mito do Lobisomem nascera na Grécia clássica, foi assimilado pela antiga Roma, daí passando para toda a Europa e chegando até o Brasil por intermédio de Portugal.

Licaon, rei da Arcádia, filho de Pélago, tentou matar Zeus, seu hóspede de uma noite. O deus castigou-o dando-lhe a forma de um lobo. Na tradição romana, atribui-se ao lobo poderes sagrados. (A Loba romana foi quem alimentou Rômulo e Rêmulo, fundadores de Roma, segundo a lenda). Todo ano no mês de fevereiro (último mês do antigo calendário romano), no dia 15 realizava-se a festa das Lupercaliae, que começava numa gruta onde teriam sido criados Rômulo e Rêmulo, sendo aquele ritual conduzido por sacerdotes, numa espécie de romaria (o nome vem de Roma).

Até aqui nada a ver com Lobisomem. É que os lupercais (veneradores do Lobo ou da Loba), partiam da gruta em direção à cidade – explica Cascudo – e saíam seminus, apenas com um cinturão feito da pele de lobo, empunhando correias da mesma pele e sujos de sangue, corriam urrando pelas ruas de Roma, açoitando os transeuntes. (Dizem que as mulheres achavam bom esse tirar sangue, como indício de fecundidade).

Em Portugal o mito do Lobisomem é corrente em todo o país, com nomes diversos. No Brasil como em Portugal, há diferentes versões sobre o fenômeno da metamorfização do homem (digo homem, porque não há lobo-mulher). Dentre as causas da metamorfização, prevalece a de fundo moral, ou seja, de ligações incestuosas entre irmãos ou primos-germanos e compadres. Quando não, admite-se a causa de doença mental, em que o enfermo se supõe transformado em lobo.

Em Goiás, no vão do Paranã pode-se associar a licantropia à doença endêmica da malária ou impaludismo, que geralmente provoca tristeza e depressão. Essa a caracterização física do homem que vira lobisomem: um sujeito magro, amarelo e empalamado. Como por aqui não há o lobo grande das estepes, mas o pequeno lobo guará que é uma espécie de cachorro selvagem, o Lobisomem do vão do Paranã toma a forma de um cão andejo que ataca as pessoas e as estraçalha.

De perguntar-se: e agora, que foi praticamente erradicado o mosquito transmissor da malária, desapareceu o Lobisomem? Certamente outra causa da deformação humana veio substituir o mosquito. Dir-se-ia o vírus da violência urbana: o Lobisomem agora pode ser encontrado em cada esquina. Na região do vão do Paranã o Lobisomem (lobo e homem) é descrito como um monstro protéico, de várias formas, que comumente aparece como um lobo grande e preto, mas com orelhas enormes de jumento que batem como matracas. Aparece nas noites de lua de sexta para sábado (em outras regiões é de quinta para sexta). Para quebrar o encanto e trazê-lo de volta à forma humana, é preciso tirar-lhe sangue: mas ai daquele que o Lobisomem descobrir que o fez.

O Lobisomem (ou Lobisono, com dizem) é o sétimo filho de um casal que só tinha homens. (De só mulheres, vira bruxa). Noutras regiões, é o sétimo filho de um casal que só tinha mulheres. Para livrar o filho de cumprir esta sina, é o pai  dá-lo a batizar a um irmão mais velho. Como dito, quem vira lobisomem é pálido, magro, sorumbático e tristonho. Quando vira bicho, os dentes aumentam, os pelos crescem e o corpo toma formas monstruosas. (Na terra dos homens magros, todo mundo era suspeito).

 

Quem vira mula-sem-cabeça?

Dizem que mula-sem-cabeça é mulher de padre. Depois de morta aparece até sete anos rondando a freguesia, na forma de mula-sem-cabeça. Quem se anteponha à sua marcha, sofrerá patadas até desocupar o caminho. Quando duas mulas-sem-cabeça se encontram, brigam até o galo cantar, hora em que desencantam.

É uma tradição que teve origem na península ibérica e chegou até nós por intermédio de espanhóis e portugueses. As versões são idênticas quanto às razões punitivas  que deram causa à Mula-sem-cabeça, vale dizer, da mulher que teve relações sexuais com padre e se transformou na própria besta que era geralmente montada pelos padres em suas costumeiras viagens de desobrigas (percorrer a freguesia oferecendo assistência religiosa e com isso desobrigar os fiéis de procurarem a paróquia).

Segundo Camara Cascudo (1983, p. 165): “A mula era, evidentemente, um animal mais próximo da pessoa do padre e nele, pela maior força de lógica, encarnar-se-ia quem fosse por Deus castigado por contato criminoso com seu ungido.” De perguntar-se: e o padre, quando desonra a batina, vira lobisomem? Dizem que não, porque quando faz os votos é ungido com santos óleos. Mas acerta as contas com Deus depois da morte.

 

Dorme nenén: lá vem a bruxa

Bruxa é a sétima filha de um casal que só tinha mulheres. Toma a forma de um morcego grande que entra nos quartos das mulheres paridas para chupar o umbigo das crianças no sétimo dia (sempre a mística do número 7). Na noite, é a mãe acender uma candeia ou vela e ficar de vigília. Para afugentá-la deve-se colocar uma tesoura aberta debaixo da cama. A Bruxa, para desencantar, deveria casar-se com o Lobisomem, sétimo filho de um casal que só tinha homens.

Segundo o mestre Camara Cascudo (1983, p. 180): “A bruxa infantil só aparece nas ameaças noturnas quando o sono desobedece à vontade materna.” A bem dizer, todos os mitos infantis nasceram da psicologia do medo como forma de intimidar as crianças e obrigá-las a fazer a vontade dos adultos. (Dorme neném, que o bicho vem pegar, é um exemplo).

 

Em lugar da Sereia, o Nego d´Água

Dizem que com a libertação dos escravos os negros ficaram eufóricos e fizeram uma festa. Como não tinham o que comer, um jovem negro ficou encantado e correu até o rio, atirando-se nas águas do Paranã e lá permaneceu até hoje. Não vem em terra com medo de homem branco: talvez o senhor que o tivesse maltratado no trabalho escravo.

Dentre os monstros da água – desde o Gigante Adamastor de Os Lusíadas de Camões, que afrontou os ousados portugueses ao atravessarem o Cabo das Tormentas – até hoje, na cultura popular, surgem versões regionais dessa figura misteriosa que surge inesperadamente da forças das águas (não como a Sereia, Iara ou Mãe-d´Água), mas como um monstro másculo, que ameaça pescadores ou ousados atravessadores de rios caudalosos como o Paranã (é um alerta de perigo).

Não há uniformidade na descrição e caracterização física do Nego D´Água. Consta que é um homem preto pequeninho, baixinho, dos cabelos lisos, luzidios, compridos, que mora nágua. Descrição que bate com o biotipo do homem da região. Como é misterioso, causa temor aos que freqüentam águas escuras em ribanceiras ermas. Se você não sabe nadar, é melhor tornar-se amigo do Nego d´água.

 

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: [email protected])

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias