Quando o silêncio é de ouro
Redação DM
Publicado em 14 de outubro de 2015 às 23:46 | Atualizado há 10 anosOs agentes policiais revistaram todo passageiro que ia tomar o avião que demandaria São Paulo.
Estavam no portão do alambrado, alguns metros distantes do potente aeroplano.
Enquanto, discretamente, apalpavam os cavalheiros, examinavam bolsas e bagagens, os dois servidores conversavam alegres e descontraidamente.
Mas quando foram abrir a valise de um médico, este senhor jogou-a para o ar, fazendo espalhar-se pelo chão uma porção de coisas, entre outras, instrumentos médicos e caixas de remédio.
– Eu vou participar de um congresso em São Paulo, e não admito que suspeitem de mim! Sou médico e exijo que me respeitem como tal!
– Não é pelo fato de o senhor ser doutor que esteja isento da nossa vistoria, obrigação esta que cumprimos para preservar a segurança dos senhores mesmos, pois nos dias de hoje os sequestros de aviões estão muito frequentes. O cavalheiro nos perdoe, mas é dever nosso cuidar de evitar possíveis problemas durante o voo.
No entanto, o homem prorrompeu-se em desacatos e insultos; inflado pelo orgulho ferido ou por tola vaidade. Foi então que os agentes fiscalizadores lhe explicaram:
– Doutor, estamos aqui cumprindo o nosso dever. Se o senhor insiste em não compreender, favor não nos insultar porque não somos palhaços e nem estamos a fim de tanto maltrato só porque o cidadão é um médico. Saiba que o cavalheiro não viajará mais. Está se portando como um suspeito!
Chamaram dois guardas de portes agigantados e os autorizou a retirar dali o homem visivelmente alterado. O que foi feito. Minutos depois, o facultativo retornava à presença dos agentes e lhes dizia, educadamente:
– Os senhores me desculpem. Eu estava muito nervoso. Preciso comparecer ao congresso de medicina e não posso perder esse avião.
– Está bem – respondeu um dos fiscalizadores – o senhor deve reconhecer que a educação cabe em qualquer lugar e em qualquer pessoa. Sugiro que, a bem de todos, e para cumprimento certo do nosso dever, o cavalheiro se disponha a ser vistoriado.
– Perfeitamente. Assentiu o médico, ficando em silêncio enquanto era vasculhado.
– Muito obrigado. E boa viagem. Disseram-lhe os dois vigilantes.
Tão logo o passageiro se retirou, os homens comentaram:
– Não há um só dia que não tenhamos problemas, hein?
– É verdade. Obrigado e boa viagem.
E prosseguiram o trabalho, examinando tudo e todos, retirando das bagagens objetos pontiagudos, armas de fogo e coisas mais que poderiam servir de instrumentos perigosos.
– Obrigado, minha senhora. E boa viagem.
Nisto chegou um boyzinho de cabelos longos, despenteados, camiseta espalhafatosa, com mala, tacapes de índio, arco e flechas.
Foi aquele boró. O rapaz não queria entender que aqueles objetos poderiam seguir viagem, mas não com ele, sim no bagageiro; receberia um comprovante de que entregara à companhia os seus apetrechos indígenas e, finda a viagem, os teria de volta. Mas qual! O jovem queria viajar com as coisas na mão!
– Mas, pra quê, meu rapaz? Indagava o agente, um tanto já agastado pela recalcitrância do viajante.
– Por nada, ora! São objetos meus! Folclore brasileiro! Coisa nossa, bicho, será que num manja? É bobo, é?
A um sinal dos vigilantes, os dois guardas grandalhões surgiram de novo e retiraram o moço, que esperneava muito, deixando suas flechas e tacapes, expostas, de pé, logo à entrada, onde se achavam os dois vistoriadores.
Habituados a tais reações, os polidos agentes olhavam os instrumentos selvícolas, comentando-os, quase esquecidos do seu dono que ficara sentado no “banco da calma”, quando dele escutaram chistosa gozação:
– Cuidado, bichos! Isso aí pode dar um bote em vocês, manjam coroas?
– Você não viajará mais! Não estamos aqui pra sofrer gozação de moleques pirados, entendeu? E ordenou aos guardas que o retirassem para fora do aeroporto com flechas, tacapes e tudo, o que foi feito, malgrado os berros e as sacudidelas do rapaz.
Os passageiros se sucediam naquela entrada, e todos passavam pela obrigatória vistoria; depois desses pequenos incidentes, tudo transcorria normal até que sucedeu algo inédito.
Surgiu diante dos vigias um homem pequeno, magro, cabelo amarfanhado e liso, escorrendo pela testa, andar lento, pesado, braços caídos, meio abertos, cabeça erguida; seu caminhar oferecia-lhe um gingado grotesco, parecido com o de um ganso atropelado; vestia camiseta de malha branca, calça escura, meias e sapatos. Não trazia bagagem. Mãos vazias.
Ao ser revistado, ele mesmo revirou os bolsos, abriu os braços, espalmou as mãos e, com invejável tranquilidade, sem balbuciar uma só palavra, deixou se vistoriar, com humildade.
– Muito bem. Disse um dos vigilantes. Pode ir. Boa viagem.
Ele apenas meneou a cabeça, um sorriso leve, e seguiu em frente, com seu andado de ganso de asas pendidas. Os fiscais os observavam curiosos e, habituados a suspeitar de todos, levantaram conjecturas a respeito do homenzinho.
– Será que ele é mudo?
– Não parece. Mas que parece muito suspeito, isso parece. Olhe só o jeito dele, a roupa simples. Sei não… Pra mim esse cara é malandro…
– Não é pra menos, respondeu o outro – nem bagagem carrega… nem um jornal sequer… nada! Repare o jeitão dele. Tem razão, Ricardo, o homem é mesmo da pesada…
Chamaram de novo os dois guardas grandalhões e os mandaram trazer de volta o estranho viajante, esclarecendo que fossem educados com ele, pois se tratava de homem polido. Quando os policiais puseram a mão no ombro do homem, este já pisava no primeiro degrau da escada que o levaria até o interior do avião.
– Por favor, os agentes estão chamando o senhor de volta.
Sem nada responder, e sem a mínima demonstração de contrariedade, o homem retorna com seu andar lento e seu gingado de ganso, e ao apresentar-se diante dos agentes, o fez em silêncio, sorriso leve, corpo mole, braços pendidos.
Os vigilantes olharam-no com atenção e pediram-lhe para entrar numa cabine próxima, onde pretenderiam vistoriá-lo mais atenta e minuciosamente. Ele caminhava à frente e os dois o acompanhavam até ao alojamento, enquanto os motores do avião rugiam, esperando apenas por ele, o último dos passageiros.
– Sente-se nesta cadeira. Ordenou o agente, no que fora prontamente atendido.
– Qual é o seu nome? Indagou Anderson, o vistoriador.
O viajante retirou do bolso da camisa a carteira de identidade e a entregou aos homens, que a examinaram curiosos.
– Profissão?
Retirou outra carteirinha – a do Sindicato – entregou-a aos vigilantes que se informaram quanto ao que perguntaram.
– Levante-se e tire a camisa.
O homenzinho levantou-se, tirou a camisa, deu-a ao comissário e sentou-se em seguida.
– Tire as calças. Pediu Ricardo.
O homem ergueu-se novamente, tirou as calças, mostrou-as ao solicitante que as examinou; sentou-se.
– Tire os sapatos. Pediu o comissário Anderson.
Tirou-os, sentado mesmo, mas sem uma palavra até agora.
– As meias.
Tirou-as.
– A cueca. Pediu um dos agentes olhando para o outro, como se o indagasse silenciosamente se não “estava indo longe demais”.
O homem se pôs de pé, tirou a última peça de roupa, exibiu-se de frente para os agentes, virou-se de costas, mostrou-se a eles numa reverência tranquila, e ficou aguardando as ordens.
– Se vista.
Lá fora o avião roncava, esperando o passageiro.
Serenamente, como se nada tivesse lhe acontecido, o viajante vestia peça por peça, até terminar pelo sapato, amarrando-o e pondo-se de pé, calmo, olhando para os senhores, alargando os braços na posição de quem pergunta “e agora”?
– Pode ir.
E o homem despediu-se dos agentes com breve meneio de cabeça, retirou-se da presença deles com o seu andar lento e pesado, tendo no corpo mole um gingado de ganso destroncado. Lá do avião, o encarregado de retirar a escada fazia gestos bruscos para que ele andasse logo, pois o avião estava em atraso. Mas o homem seguia seu ritmo normal, sereno, calmo, humilde…
Os dois sentinelas ficaram o tempo todo observando o estranho homem até que este sumisse dentro do avião. Mantinham-se, porém, pasmados, quietos, mudos, recolhendo, quem sabe, mais uma experiência, mais uma lição…
Quem já conseguiu vencer a si mesmo…
(Iron Junqueira, escritor)