Cultura

Dos piquetes do curral às construções poéticas

Redação DM

Publicado em 14 de outubro de 2015 às 02:53 | Atualizado há 8 meses

por Walacy Neto

Encontrar um poeta atualmente não é muito difícil. Como dizia Leminski, é muito fácil ser poeta aos 16 anos, aos 20 anos, mas o difícil é não negar sua poesia de frente à realidade. Difícil não abandonar as letras e todo esse universo abstrata, que às vezes parece menor, quando o sol é quente e o bolso vazio. Mas poetas de verdade são como palhas em um imenso agulheiro. Não estão em todos os lugares e nem são de fácil acesso. Por esse fato é preciso estar atento quando um poeta real bate na porta. É quase como um presságio, um sinal de sorte. Diferente de quando um gato preto atravessa o caminho, quando um poeta faz tal ato a sina não é de azar, mas de muita poesia e muita coisa a se analisar.

João Moisés de Souza Batista tem 78 anos. Nasceu na cidade de Juazeiro, na Bahia, e aos seis anos de idade mudou-se pra capital, Salvador, para entrar no seminário: sua intenção era ser padre. Aos 22 anos, quando era a hora de ser ordenado padre, recebeu a notícia que não podia, pois era negro e na época os padres deveriam ser brancos, apenas. Teria que esperar a vinda do Papa, coisa que só aconteceu nos anos 80, quando já era velho e não tinha mais a intenção de seguir o celibato. Criado pelo pai, sempre foi imposto que deveria trabalhar sempre e foi o que fez até os dias de hoje. Na roça, desde pequeno trabalhou “com madeira”, como diz, na construção de currais. Desde pequeno trabalhou com as letras, como diz, na construção de poemas.

João é um poeta, mas não das ruas e dos prédios. João se criou dos ensinamentos das estradas de chão batido, nas porteiras enferrujadas e nas vigas de pau emparelhadas nos currais. Ele diz que a poesia sempre esteve na sua vida e por algum tempo tentou ser repentista até perceber que essa área apenas lhe atiçava os sentidos, mas não tinha “berço” para competir com os grandes cantores do sertão nordestino. Bastam apenas alguns minutos de conversa para que o poeta se sinta a vontade pra recitar algum poema que guarda na cabeça. São versos e mais versos repetidos sem trava, coisa que para muitos jovens seria um serviço quase impossível. Ele fala de Cora Coralina, de Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade e dos poetas trovadorescos da França, que foram o embrião para a poesia cordelista do nordeste brasileiro. Gosta de ler livros de história e de ciência afirmando que “só porque um camarada é roceiro, não quer dizer que ele não sabe das coisas, não é estudado”.

Para João um poeta tem que ser orgulhoso, pois só dessa forma pode ser ouvido como deve ser ouvido. Na recitação (não declamação), João tem voz pra dizer sobre as belezas do mundo e dessa forma “alargar” nossos horizontes, como dizia Manoel de Barros. Ele não tem filhos. Nunca se casou. Diz e re-diz que queria ser padre, mas atualmente não indica para ninguém a leitura da Bíblia que, segundo ele, só serve para fechar as ideias das pessoas e deixar a gente cada vez mais bitolado. Para ele a reza é apenas uma forma de assumir um erro e dizer, ao mesmo tempo, que não será resolvido. Seu único mandamento é: fazer para o outro aquilo que queria que o outro fizesse por você.

Confira abaixo a entrevista completa:

Você tem filhos?

Não, nunca casei. Moro só. Queria ser padre. Não virei padre porque era negro. Entrei pro seminário com 6 anos e lá aprendi a mexer com madeira. Saí de lá com 22 anos porque na época não podia ser ordenado padre quem era negro. Disseram que os negros seriam ordenados quando o papa viesse ao Brasil, mas só aconteceu em 80 com João Paulo II e eu já estava velho.

Eles queriam a mão de obra barata, só que eles me deram uma coisa que eu não ganharia em outro lugar que foi a instrução que eu tenho hoje. Eu estudei muito. Estudei tudo que meus colegas davam pra eu ler. Sou muito orgulhoso, um poeta tem que ser orgulhoso ou não é poeta.

Você gosta de ler o que?

Eu leio coisas de história, sou muito ligado à história. Acho que se o homem for ficar fechado em bíblia ele vai ficar muito ignorante, muito bitolado.

Você acha que sua poesia é movida pelo orgulho?

Claro. Nenhum poeta vai ser poeta se ele não for orgulhoso. O repentista, por exemplo, é o cidadão mais orgulhoso. Um dia fui inventar de cantar repente, fui lá pra Paraíba, na Serra do Texeira, pra aprender a cantar repente. Fui lá e perdi feio três vezes e fiquei muito machucado. O repente é um desafio. Fiquei lá triste e me preparando pra revanche. Meu rival era Dilmas Batista, um pernambucano bem feito e bem sucedido. Fui na revanche e perdi pra ele outra vez, só fui ganhar na quarta vez. Ele, que era um fazendeiro, fez o repente na hora e guardei o primeiro versinho comigo era assim:

Não vejo nenhum motivo

para atender o senhor

No comércio eu tenho força

Na roça eu sou tratador

Ensino os que sabem menos

E também sou cantador

Eu ganhei dele porque o verso que fiz na resposta foi uma salva de palma do público que não dava mais jeito. Aí ele perdeu. Minha resposta foi mais ou menos assim:

Você já foi cantador

Hoje é fraco no repente

No comércio ganha pouco

Na roça perde a semente

Se ensina os que sabem menos

Ensina pra pouca gente

Mas eu não sou repentista. Fiquei muito tempo no Texeira cantando, mas eu nunca tive pai repentista, vô repentista nem nada disso. Meu pai nem gostava de quem canta repente e isso vem da tradição

Seu pai gostava desse gosto teu pela poesia?

Meu pai gostava que homem trabalhasse. Nascer trabalhando e morrer trabalhando, como eu que to velho e continuo trabalhando de fazedor de curral. Tô com 78 anos e não vou parar de trabalhar.

E de escrever?

De escrever também não. Enquanto eu estiver vivo eu vou continuar escrevendo.

Tem um poema que recito, de Cora Coralina. “De volta pra minha casa”. Esse poema até parece que nem é da Cora Coralina, mas é porque ele foi metrificado por um pernambucano. Porque um poema clássico ele não tem rima, se você perceber a maioria dos poemas do Carlos Drummond de Andrade também não tem rima.

Já na poesia trovadoresca, que veio de Loccitane, na França. Teve também no Oriente Médio sua fonte. O repente, poesia, cordel não é todo brasileiro. O sistema de fazer repente foi criado no Brasil, mas a fonte veio desse lugar. Tô te falando isso pra mostrar que só porque o camarada é roceiro que ele não sabe das coisas, não é estudado. Não se faz poesia sem ter informação na ciência, na biologia e por aí.

Qual é a função do poeta?

Rapaz, ela pode ser até mesmo curativa. Você pode até mesmo curar a pessoa com a poesia. Tem gente que pensa que o poeta é um cidadão que não precisa ter muito humor. O que o poeta diz ele passa pros outros. Quando alguém comprimenta um poeta, por exemplo, ele não pode dizer que está “mais ou menos”, mas tem que afirmar com força que “estou bem em todos os sentidos da vida” porque assim ele já uma injeção de ânimo.

Então eu acho que a função do poeta é tão ampla que meu vocabulário é pobre pra expressar qual seria a função exata que ele tem na sociedade.

Anteriormente o senhor falou que não lê a Bíblia, mas foi seminarista. Como é a relação?

Eu não leio a Bíblia. Não aconselho a leitura de Bíblia. Eu substituo os 12 mandamentos por apenas uma coisa: trate os outros da maneira que você gostaria de ser tratado. Se rezar tá errado. A reza é você assumindo que fez ou que está fazendo algo errado e que não vai tomar nenhuma atitude pra mudar isso. Ninguém concerta erro de ninguém, faça certo que fica tudo certo.

Você trabalha na construção de curral desde quando?

Desde sempre eu já fazia isso. Faço curral desde pequeno. Fui criado nessa lida da madeira. Eu posso ficar deitado, por causa de um acidente, mas vou continuar trabalhando. Meu segredo é minha alimentação. Eu tenho 78 anos. Você precisa é ter conhecimento do que comer.

Atualmente, a poesia tem mais ligação com o RAP e talvez alguma relação com o repente. O que você vê dessas expressões?

Eu acho que o RAP tem nada a ver com o repente. Mas tem o seu valor, pois elementos que estão lá são semelhantes a eles (poetas). Não posso desmerecer a poesia deles dizendo que eles têm que adotar o tipo de poesia que eu trabalho. Cada um tem seu espaço, a sua hora e o seu recado pra passar. A minha ligação seria de admirador, contando que não se tenha palavrão, porque não gosto de palavrão em poesia.

Vaqueiro gado e mulher

São três joias do mundo tem

Vaqueiro e gado eu estimo

Mulher preso e quero bem

Não é santíssima trindade

Mas é trindade também

Mulher não combina com poesia pornográfica. Mulher combina com respeito com o jeito certo de se tratar um ser humano.


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