Cultura

Na cama com Drummond

Redação DM

Publicado em 10 de outubro de 2015 às 21:40 | Atualizado há 8 meses

Acordo na noite. Apavorada com algum assunto dito em segredo no meio de um sonho. Acordo suando com a realidade ainda a dizer algo aos olhos sem eu ver. Pareço cansada de regressar, como se viesse de pé no chão do plano dos sonhos até os panos que servem de lençol por sobre a cama. Olho pro lado. Lá está Drummond deitado me fitando o corpo naturalmente pelado. A bunda semi-tampada pela coberta. Ele meche um pouco e rompe qualquer sombra de silêncio. Estranhamente vai dizendo bundamel bundalis bundacor – e sua voz vai aumentando de tamanho – bundamor bundalei bundalor bundanil bundapão bunda de mil versões, pluribunda unibunda – e sua voz vai dobrando o tamanho – bunda em flor bunda em albunda lunar e sol bundabarril.

Eu sem jeito, olhando de lado do corpo, com o olho todo fechado. Acordei no meio da noite depois de já ter acordado, agora desperta a mil. Tirava o sonho dos olhos e via que o poeta Carlos rodava o dedo por sobre o lençol de seda e me olhava com o lado do corpo. Em um amor natural, sei, que o que passa na cama é segredo de quem ama. Ai, cama, canção de cuna, dizia Carlitos por cima do óculos todo afetivo, ativo. Dorme, menina, nanana, dorme a onça suçuarana, dorme a cândida vagina, dorme a última sirena ou a penúltima… O pênis dorme , puma, americana fera exausta.

Carlos Drummond de Andrade me parecia bem antes um poeta muito menos saliente, muito menos safado. Parecia que a revolução dos versos só tendia pro lado mais puro da poesia, ou seja, a movimentação que cada verso pode fazer. Mas dentro de Drummond cabem os sentimentos do mundo e estes não se limitam a revoltas ou revoluções. O tesão, a tara e a vontade de falar de sexo também é um sentimento em comum dos cidadãos, agora entendo. Drummond tem muito mais do que uma rosa para dar ao povo. Tem um dedo do meio em riste para enfiar, girar e tirar e colocar outra vez. Agora eu sei.

Sem triscar os lábios ele me beija com uma história. A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único. Ele me beija e não sinto se quer um toque por trás da nuca ou um carinho na parte esquerda do rosto. O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu. Eleeu, eu ele. Ele me lia. Lê eu e eu leio-o. Os dois nos movíamos posuídos, trepassados, eleu. A posse resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalisno, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados em nós. Pedi um pouco de calma. Parecia que ele havia avançado o sinal vermelho da minha cara envergonhada. Peço um tempo pra girar dentro da minha cabeça e ele faz que sim.

Acordei eu, olhando pro Drummond e não saiba se sucumbia aos versinhos de pé do ouvido ou fazia de moça estranha, dessas que leva segredo pra cama e se amarra em si mesma. Ele dizia que o que se passa na cama fica na cama entre o alguém e o outro alguém que se ama e pronto. Mas ainda os olhos permaneciam mareados. Eu sabia que muito das minhas vontades adivinham da mistura do sono com algo que eu estava por ler. Fui caindo na real e saindo da foca dos sonhos. Quando li o livro Angústia, do Graciliano Ramos, eu sonhei por vários séculos que estava preso naquele personagem de idéias fixas e de movimentos rotineiros. Passei a sonhar com cordas, com o ranger de portas e com o sol posicionado por anos no mesmo lugar. Agora acordo e vou até a estante, escolho o livro que deixei agorinha por ali. O Amor Natural, de Carlos Drummond de Andrade. O marca página na 45 no poema Sugar e ser Sugado pelo Amor. Abro e leio com atenção enquanto me deito na cama.

Sugar e ser sugado pelo amor

no mesmo instante boca milvalente

o corpo dois em um o gozo pleno

que não pertence a mim nem te pertence

um gozo de fusão difusa transfusão

lamber o chupar o ser chupado

no mesmo espasmo

é tudo boca boca boca boca

sessenta e nove vezes boqulíngua.

Durmo outra vez. Lá está Drummond fazendo círculos no lençol com seu dedo indicador.


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