A era dos hipócritas
Redação DM
Publicado em 6 de outubro de 2015 às 22:54 | Atualizado há 10 anosPossivelmente, uma das mais expressivas características da moderna sociedade líquida seja o surgimento de uma nova modalidade de liderança: o guardião da hipocrisia coletiva. Essa figura que simboliza a deterioração dos valores e a capacidade intelectiva do ser humano moderno vem se revelando com surpreendente ênfase no momento político pelo qual atravessa o Brasil. A grande maioria da sociedade brasileira em sendo capitaneada por canalhas que se tornam em representantes da estupidez coletiva e, marchando como zumbis urbanos, praticam os mais patéticos e desprezíveis atos que nos remetem à sensação de retrocesso civilizatório, de forma constrangedora. O cenário dantesco descrito na obra Ensaio Sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago, na qual uma epidemia de cegueira atinge uma população inteira, muito se assemelha ao momento político atual, onde as pessoas demonstram parecer que perderam totalmente a capacidade de ver, de pensar, de discernir. Como o adágio antigo diz que em terra de cego caolho é rei, é natural que nessa marcha de cegos surjam os malandros e aproveitadores para conduzi-los e manipulá-los. O exemplo mais ilustrativo dessa modalidade de imbecilidade coletiva, a qual favorece o surgimento de guardiões da hipocrisia, são as manifestações públicas daqueles que se autodenominam “indignados”, “contra a corrupção”, e criam movimentos sociais em defesa de golpe militar, rompimento com as normas da democracia e a segurança jurídica, culminando com a ovação de figuras representativas do retrocesso civilizatório e configurativas de uma caricatura política.
As seguidas manifestações nas ruas e comportamentos coletivos denominados “panelaços” (a sociedade brasileira já teve forma mais inteligente de se manifestar e protestar) revelam o nível de emburrecimento da sociedade burguesa atual, remetendo-nos àquilo que preconizava o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Segundo ele, o Brasil é o único lugar que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. O vaticínio ganha reforço se considerarmos que a elite social brasileira, ao mesmo tempo em que vitupera “contra a corrupção”, “contra a roubalheira”, “a favor da ética e da moralidade na política”, elege como seus legítimos representantes canalhas hipócritas da estirpe de Eduardo Cunha, Agripino Maia, Aécio Neves e seus asseclas. Os dois primeiros são formalmente investigados no Brasil por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, sendo que Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, teve suas contas secretas bloqueadas pela justiça da Suíça, que remeteu às autoridades brasileiras farta documentação com provas para a abertura de procedimento criminal, pelo fato de não ser possível a sua extradição. Há que se lembrar, ainda, que esse vigarista mentiu em audiência de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), negando a existência de tais contas. Isso, por si só, é suficiente para a cassação de seu mandato por quebra de decoro parlamentar. Entretanto, a hipócrita “oposição” o tem como útil a levar adiante o golpe contra o governo da presidente Dilma Rousseff.
Na última manifestação de rua, caracterizada pela marcha de centenas de energúmenos vestidos com as camisetas das organizações criminosas Fifa e CBF, com cartazes e gritos de “chega de corrupção”, “basta”, defendendo a intervenção militar, fechamento da Suprema Corte e, principalmente, o impeachment de uma presidente recém e legitimamente eleita, eu, por curiosidade, resolvi observar as fotos das pessoas que estavam dentre os manifestantes. Em apenas três fotos, postadas e compartilhadas nas redes sociais, foi possível reconhecer ao menos seis ladrões, dentre políticos, “empresários” e diretores de empresas públicas. Um desses salafrários, que ostentava um cartaz com os dizeres “basta de corrupção”, foi preso meses depois numa operação comandada pelo Ministério Público, por roubo de dinheiro público através de superfaturamento de obras. Por seu turno, o presidente do partido DEM (“Democratas”), senador Agripino Maia, um filhote da ditatura e árduo defensor do golpe contra a presidente Dilma Rousseff, e que se apresenta na mídia como o paladino da ética, é citado na Operação Lava Jato e formalmente investigado por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Em verdade, as manifestações não são contra a corrupção, pois a elite social brasileira é endêmica e organicamente corrupta que elege seus representantes – igualmente corruptos e moralmente falidos. O que está acontecendo, atualmente, são manifestações de ódio, de revolta de um segmento tacanha, torpe, hipócrita de alienados e obtusos, contra políticas sociais inclusivas que beneficiem uma grande parte da população pobre e historicamente explorada e espoliada, útil à sobrevivência de uma elite sádica.
Vivemos em uma terrível era da moral e honestidade seletivas, nas quais policiam e exigem, enfurecidamente, honestidade e moralidade para os “outros”, enquanto são lenientes e cúmplices com as roubalheiras dos “nossos”. Todo o furor de uma elite brasileira não é contra a corrupção, é contra um partido. Essa elite não tem moral para se posicionar contra a corrupção pois ela se nutre do delito. A burguesia brasileira, parafraseando Santo Agostinho, em sua obra “De Civitate Dei”, apodera-se das instituições que deveriam ser de “justiça” e que visassem o ideal comum, transformando a república do Brasil em um vasto latrocínio. Eu sempre lanço um desafio e, aqui, o repito: mostrem-me, no estado de Goiás, um único indivíduo milionário que não tenha a sua fortuna, direta ou indiretamente, atual ou remotamente, vinculada ao dinheiro público, através de uma ou outra forma de imoralidade ou delinquência.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – [email protected])