Manguebeat e a regionalização da cultura musical no Brasil
Redação DM
Publicado em 30 de setembro de 2015 às 21:21 | Atualizado há 4 mesesO movimento Manguebeat nasceu em Recife no início da década de 90 e foi criado por necessidade extrema, devido a situação de estagnação cultural e econômica vivida nessa época. Embora muitos intelectuais defendam a ideia de que o Manguebeat não nasceu com caráter político – que seria mais uma brincadeira entre jovens músicos de Recife, procurando espaço no mercado musical –, as letras politizadas e polêmicas, os arranjos complexos, as fusões musicais e culturais causaram uma revolução na cidade. Sendo assim, pode-se questionar a argumentação de que o Manguebeat era desprovido de intenção subversiva.
Para alguns indivíduos como DJ Dolores, a priori o Manguebeat não era um movimento per se. Era uma só uma desculpa para juntar amigos e fazer música. Entretanto para Chico Science e Fred Zero Quatro não era bem assim, tendo em vista que eles criaram uma “cooperativa cultural” para poder divulgar o trabalho e as ideias.
O movimento tem como símbolo uma antena enfiada na lama. A metáfora significa a necessidade de conectar o mangue com as ideias e conceitos pop. Um hibridismo: a cultura do Mangue com a cultura pop globalizada. E o Manguebeat obteve sucesso total no caso de Chico Science & Nação Zumbi, pois funde maracatu com metal, funde instrumentos de percussão de origem africana que faz parte da tradição cultural pernambucana com guitarra e baixo, tocados no estilo europeu/americano. Mundo Livre S/A, banda de Fred 04, tem metal com batuque e até mesmo o cavaquinho.
O Manguebeat ganhou um manifesto em 1992, escrito por Fred 04 e foi intitulado “Caranguejos com Cérebro”. O manifesto explica o conceito de mangue como ecossistema de enorme biodiversidade, explica o conceito da Manguetown, que é a periferia de Recife e seus problemas e explica o movimento. O movimento que pretende acabar com o estado de limbo cultural que se encontra Recife. Pode-se notar a gigantesca necessidade de mudança, de “algo deve ser feito”.
“Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! (…) O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade?…” – Manifesto Caranguejos com Cérebro
A resposta foi o Manguebeat, que como toda mudança, revolução, sofre na mão dos conservadores. O movimento armorial foi bastante crítico a todo esse hibridismo cultural, com alegações de destruição da cultura nacional e nordestina. Ariano Suassuna foi um crítico de Chico Science. Entretanto a reforma musical no Recife fez com que acontecesse o despertar cultural da população. Foi um boom em toda região. Em cada esquina, bar havia um evento Manguebeat, que também influenciou o cinema, a moda e as artes plásticas. O Manguebeat fez de Pernambuco, mais uma vez, centro de cultura, cultura regionalizada.
O Manguebeat significa a classe marginalizada produzindo cultura, significa que o indivíduo não abastado não precisa mais dos intelectuais de classe média para mostrar a sociedade seus problemas e mazelas, porque agora esse indivíduo tem voz. Uma voz que fala pelo coletivo e que todas as classes são capazes de compreender. O Manguebeat transformou o marginalizado de objeto inspirador de criação cultural à sujeito que fala por si só, que debate, que é independente e que não precisa de uma minoria para faze-lo ser notado. A população dos mangues são a concentração da efervescência cultural dos anos 90 em Recife.
Em 1994, CSNZ lançou o principal produto do Manguebeat, o álbum “Da Lama Ao Caos”. Com músicas politizadas, revoltadas, críticas, excelentemente executadas e cheio de singularidades da cultura nordestina e principalmente do mangue.
Hoje o que Recife produz é exportado para todo país e até mesmo para o exterior, a antena foi muito bem conectada na lama.
“Caranguejos com Cérebro”
Leia na integra o manifesto do Manguebeat escrito por Fred 04
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de micro-organismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcolm McLaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.