Opinião

Todas as mulheres como pétalas espalhadas na história… (parte II)

Redação DM

Publicado em 5 de agosto de 2015 às 22:15 | Atualizado há 10 anos

Decisivamente, outros nomes marcaram seu tempo: Virgínia Woof, Agatha Christie, Dons Lesing (inglesas); Margareth Mitchel (autora de E o vento levou), Joice Carol Oates, Alice Walker (norte-americanas) Annele Kolb, Nelly Sachs (alemãs); Matilde Serao, Ada Negri (italianas); Concha Espina, Mercedes Rodovera (espanholas); Gabriela Mistral, Marta Brunet (chilenas); Alfonsina Storni, Silvina Ocampo (argentinas); Rosário Castellanos, Elena Garro (mexicanas); Delmira Algustini, Maria Amália Vai Ferreira (uraguaias); Tereza de La Parra, Antonia Palacios (venezuelatrns); Florbela Espanca, Ana de Castro Osório, Augustina Bessa Luiz (portuguesas), além de outras que fizeram a literatura feminina no mundo no século XX.

No século que passou, as mulheres destacaram-se nos diversos campos, haja vista o trono do maior império do mundo em que está sentada uma mulher, a Rainha Elisabeth, o mesmo ocorrendo com a Holanda.

Também, cinco mulheres receberam o prêmio Nobel de Literatura e duas o prêmio da paz. Na legião de honra da França, Madame Boise foi a única mulher do povo que recebeu o título de “Cavalheiro” porque tinha 22 filhos e nunca abandonou a sua aldeia.

Recebeu o prêmio Nobel de Literatura a sueca Selma Lagerlof (1909), a italiana Grazia Deledda (1926), a norueguesa Sidrig Undset (1928), a norte-americana Pearl Buck (1938) e a chilena Gabriela Mistral (1945). Receberam o prêmio Nobel da paz a sueca Bertha Sutter em 1905, a norte-americana Jane Adams e a madre Tereza de Calcutá. Muitas hoje são reconhecidas, mas ainda é pouco.

Também, as mulheres conquistaram seus direitos políticos e até receberam um pedido de desculpas do Papa João Paulo II na primeira carta da igreja às mulheres, em que o santo padre defendeu o feminismo e pediu desculpas por ter a Igreja oprimido as mulheres, impedindo-as de progredir.

Mas, mesmo assim continuou condenando o aborto e proibindo o sacerdócio feminino. Talvez por isso, a cantora pop irlandesa Sinèia O’cannor rasgou a fotografia de Sua Santidade num ato público de revolta em 1992.

Mulher, mito, símbolo, luta, misto de muitos sentidos para a definição da fragilidade x força e que chega ao terceiro milênio engajada em lutas seculares e desiguais para a sua definitiva emancipação.

Mas, mesmo virando o século e milênio uma pergunta não quer calar: afinal, o que quer a mulher? Qual é o seu grande anseio nesses muitos séculos de insatisfação?

As feministas realizaram sua ideologia: trocaram a luta pela igualdade por respeito às diferenças, mas ainda veem o homem como opressor da mulher e não conseguiram erradicar unia das mais antigas práticas machistas: a violência doméstica. A mulher já é quase 50 por cento dos trabalhadores do Brasil e do mundo, ocupa o parlamento, ainda que em urna proporção bem menor – por cento – tem postos importantes no Judiciário e algumas cadeiras no Executivo.

Em Portugal, país de tradições arraigadas ao patriarcalismo com supremacia do sexo masculino sobre o feminino, a situação da mulher não foi diferente do resto do mundo. Segundo o Supplemento à Colecção de  legislação portuguesa do desembargador Antonio Ddelgado da Silva ano ano de 1791 a 1820, publicado em Lisboa na Typographia de Luiz Correia da Silva, encontramos várias leis punitivas aos atos de emancipação da mulher, rebaixando-a à condição de animal.

Observamos que, no austero regime português, havia mais preocupação com os animais do que com “hum outro sexo”, denominação misógina e carregada de significado preconceituoso.

Dentro desse regime o Brasil foi descoberto e colonizado, padronizando costumes que iriam se arraigar nas sociedades diversas em relação à condição feminina.

Em relação às mulheres, a conveniência era que elas ficassem no Brasil. O alvará de 10 de março de 1732 e as provisões de 14 de abril desse ano e 20 de fevereiro do seguinte determinavam que as mulheres não pudessem voltar do Brasil sem permissão do rei, salvo as que tivessem ido com seus maridos; as quais poderiam recolher-se em sua companhia, se os mesmos obtivessem licença para isso. Os mestres de navios que as conduzissem fora das condições indicadas, ficavam sujeitos à pena de 2.000 cruzados pagos da cadeia

Prova toda essa legislação que temos citado quanto era a coroa de Portugal ciosa de sua conquista ultramarina. Parece que só vedando ou dificultando a imigração para o Brasil, o pensamento do legislador era conservá-lo eternamente bloqueado ou prisioneiro. Por certo, não era ao interesse pessoal do emigrante que se procurava atender, mas ao interesse geral do reino, ao seu predomínio sobre a colônia.

No principio da colonização brasileira era o caos. A única preocupação vigente era a conquista a todo Justo, retirando possíveis riquezas e explorando ou conquistando.

A preocupação de conquista retirava qualquer tentativa de emancipação feminina e a mulher ficava relegada aos excessivos trabalhos caseiros e na criação de família numerosa.

Foi a partir da chegada da Família Real ao Brasil. em 19 de março de 1808 e depois de longo período, é que houve tímida preocupação com a instrução feminina. Segundo Jean Baptist Debret, até 1815, as mulheres se limitavam a recitar preces de cor e calcular de memória sem saber escrever ou fazer as operações, de atividades somente o trabalho das agulhas constituiam seus lazeres, pois os encargos domésticos eram facultados às escravas.

No campo científico, nos primórdios do Império, algumas mulheres ousaram demonstrar talento nas invenções. Segundo o livro Inventiva brasileira, de Clovis Costa Rodrigues, na relação de patentes de invenções concedidas de 1830 a 1892, consta como primeira patente por ato concessivo a uma mulher, o destaque foi de Ricarda Rosa de Oliveira, em 1367, por Ato n° 3. 872 por inventar a tinta violeta, seguida de Joana Manocla Rodrigues que em 1884 inventou um produto denominado “Fosfote azote”, obtido por custoso processo e depois o produto denominado “sangue seco”. Coube ainda à Marquesa de Quixeramobim, em 1885, a invenção de um produto destinado a extinguir a formiga saúva, denominado “Formicida Mendonça Paes Leme” e também Maria Emilia Bates inventou um aparelho apertador de porcas e parafusos destinado aos trilhos de ferrocarris.

Foram estas as ousadas e destemidas pioneiras de inventos brasileiros no século XIX, competindo com os homens num espaço exclusivamente masculino para a época.

As mulheres dos grandes centros urbanos do País, como São Paulo e Rio de Janeiro, viviam, no século XIX, numa existência plasmada nos afazeres do lar e, as mais abastadas, mergulhadas nas obras dos clássicos universais e nos doces e puritanos romances de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1382), que iniciou sua vida literária em 1844 com A Moreninha, romance açucarado conforme os costumes da época, seguido de O Moço Louro (1845), também voltado para a temática do amor e da realização feminina no casamento: papéis que se pode começar a detectar o texto de Macedo o seu caráter ideológico, vale dizer de persuasão da leitora da excelência da condição feminina, tal conto pensada numa determinada ótica social.

Na superfície de seu texto, Macedo criticaria a sociedade da época em razão de confinar a mulher ao papel de mãe e esposa, simplesmente ao recinto doméstico, fato que mais tarde seria denunciado pela escritora pioneira Julia Lopes de Almeida.

Coube, porém, a José de Alencar (1829-1877) o grande feito de retratar a “pureza” do sexo feminino do século XIX. A mulher passou a ser o inquestionável tema de seus romances, retratada com certo sedentarismo, certa languidez, delineando moçoilas ingênuas ou não, alegres ou tristes, pálidas e desfalecidas, fagueiras ou melancólicas, outras com força estratégica que se divergia dos costumes da época como Lucíola (1861) e Senhora (1875), romances de grande sucesso.

Se nos grandes centros urbanos a situação da mulher no século XIX era difícil, nas províncias a questão piorava. Houve, no entanto, uma que conseguiu revolucionar os tempos do minueto, tornando-se famosa cortesã: Ana Jacinta de São José, cognominada Dona Bêja, alcunha pela qual ficou imortalizada nos escritos de Agripa Vasconcelos, Tornas Leonardos, Waldir Luiz Costa, ou mesmo em programas de entrevistas e novelas de televisão, além de filmes.

A vida da mulher do período colonial não foi nada fácil. A partir da colonização brutal iniciada em meados do século XVI, houve uma formação caótica de sociedade. Reinava o concubinato e os amaziados. O casamento, sob a concepção européia, era uma mera invenção e se dava mais nas classes abastadas para manutenção do patrimônio. À mulher cabia a tarefa de povoar esse imenso território.

As mulheres não seguiam regras convencionais de conduta social e viviam, muitas vezes, relegadas à própria sorte, criando os filhos sozinhas, já que os maridos partiam para as aventuras em novas terras no período de conflitos entre colonizadores e portugueses, índios e jesuítas, numa miscelânea de hábitos diversos.

Gilberto Freyre nos oferece em seus diferentes estudos, o teor exato dessa mistura de tantos hábitos. Também, questões como virgindade, no século XVII, não eram tabus porque, mesmo antes do casamento, a mulher precisava provar ao homem que era fértil dada a necessidade de povoar o território. A questão da infecundidade era somente feminina e, se a mulher não podia dar filhos, o marido tinha liberdade de adquirir filhos com outras mulheres.

Houve, com o passar do tempo, uma modificação de costumes e a valorização da virgindade incutida pela Igreja através de seus manuais de confessionário que estabeleciam regras para os tipos qualificados de carícias, reprimindo a libido e a paixão, mantendo-se regras e até posições para o ato sexual. Muitas vezes foi apregoada a “piedade” do esposo para com sua mulher, reforçando a idéia de santa para a esposa e de vadia para a prostituta que quebrava regras e convenções.

Nesse período, a mulher ficou reclusa ao lar, aprendendo, então, práticas curativas, partos e abortos. Era deveras limitado o seu horizonte.

Podemos destacar também num rastreamento histórico os nomes valorosos de mulheres que suplantaram o próprio tempo em lições para o futuro, heroínas que foram, vencendo os embates e os preconceitos de épocas repressivas.

Catarina Álvares Caramuru foi, decisivamente, uma pioneira. Sabe-se que nasceu em 1504 na tribo dos valentes Tupinambás, na Ilha de Itaparica, na Bahia. Conheceu Diogo Álvares Correia, o famoso Caramuru em 1526 e com ele foi à França num navio de Jacques Cartier. Foi batizada em Saint-Malô, em 30 de julho de 1528, com o nome católico de Catarina.

Voltando ao Brasil, o casal teve vários filhos que se casaram com colonos portugueses vindos com Martin Afonso e deram origem à nobreza imperial brasileira. Dos filhos do casal, ficou conhecida Madalena, casada com Afonso Rodrigues, célebre por ter sido a primeira brasileira que aprende a ler e escrever.

Esse amor entre Diogo Álvares Correia e Catarina serviu de tema para o épico Caramuru, de Santa Rita Durão e também do seriado Invenção do Brasil, veiculado pela Rede Globo de televisão em comemoração aos 500 anos do Brasil.

No fim do período colonial e início do Império, várias mulheres se destacaram, ora representando a castração, o compromisso, ora representando a audácia e a liberação, mas todas comprometidas com o tempo e com o meio em que estiveram ligadas. A primeira Imperatriz do Brasil, dona Leopoldina (1797-1826) é um exemplo bem claro do compromisso da mulher com a sociedade. Nascida em Viena d’Áustria, veio para o Brasil em 1817 para selar o compromisso diplomático entre a cortes austríaca e portuguesa, casando-se com Dom Pedro de Alcântara, herdeiro do trono de Portugal, vivendo uma existência conturbada com o príncipe pelos seus casos amorosos com Domitila de Castro Canto e Mello, a famosa Marquesa de Santos, descrita pela pena magistral de Paulo Setúbal. Também Anita Garibaldi (1821-1849) enfrentou batalhas de fuzil em punho pela defesa do país e dos ideais libertários, falecendo em Nice, na Itália.

Segundo o Anuário das Senhoras, do ano de 1957, a primeira doutora do Rio de Janeiro, formada pela Faculdade de Medicina carioca, foi a gaúcha Ermelinda Lopes de Vasconcelos que, pelo seu casamento, veio a chamar-se Ermelinda de Sã. Era filha do major Joaquim Lopes de Vasconcelos e Firmina Lopes de Vasconcelos, nascendo em Porto Alegre, em 23 de setembro de 1866 e, em 1874, foi para o Rio de Janeiro e só em 1877 iniciou seus estudos. Em 1881 tomou-se professora e, após brilhantes estudos, em 1884 ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde colou grau em dezembro de 1888, casando-se, no ano seguinte, com o seu colega dr. Alberto de Sã. Como era de praxe, dra. Ermelinda dedicou-se à ginecologia e partos.

Também coube à poeta cega, Ângela de Amaral Rangel, a primazia de ser a primeira mulher brasileira a ingressar na Academia dos Seletos do Rio de Janeiro, em 1752, segundo Domingos Carvalho da Silva em sua obra Vozes da poesia feminina. Um gesto ousado e isolado para a época, pois somente em 1904 novamente uma mulher viria a pertencer a uma academia de letras e que ocorreu na antiga Capital de Goiás, aclamando Eurydice Natal e Silva como sua primeira presidente, fato narrado no Almanaque Garnier de 1906.

Nem sempre a mulher recebeu estimulo para crescer na área cultural e as tímidas iniciativas eram vistas com certa ironia, conforme narram certos historiadores.

Num autêntico retrato social do Brasil colonial, Jean Baptist Debret refere-se ao contexto político, cultural, econômico e social, sendo detalhado seu trabalho de retratação da colônia de Portugal em seus vários aspectos, constituindo-se de preciosíssimo documento dos primórdios do Brasil. Ainda sobre a posição da mulher nesse período, encontramos outro relato.

Mas a história caminhou por muitas ladeiras e morros, altos e baixos da história que nos evoca sempre a lembrar o heroísmo que permeou a vida de cada “filha de Eva” nesse mundo de desacertos.

Estamos no século do serviço e da transformação. As mulheres, como seres consensuais, estão mais afeitas à discussão de problemáticas engajadas e de cunho social. É preciso criar o diálogo menos agressivo na busca da condição humana. É preciso lembrar que esses termos são geralmente femininos. O mundo centra-se sobre o feminino, a começar pela própria terra.

A luta pela dignidade nunca deve ser recuada. É um desafio de todos os dias. Mulheres, mesmo em jornadas excessivas de trabalho e cobranças de toda ordem, atendem ao apelo do próprio sentimento. Raramente entregam suas obrigações nos ombros alheios como tantos homens assim o fazem periodicamente.

Mas, quando observamos o aumento excessivo de mulheres chefiando lares, percebemos que não há nenhuma vitória nesse fato. É, antes, uma agressão. Pais, que são homens e mulheres, devem compartilhar a responsabilidade de uma família. Há, porém, uma cobrança velada na sociedade de que cabe à mulher a total responsabilidade e que o homem, pagando, isenta-se do cuidado de todo dia, das responsabilidades e encargos diários com a criação de filhos.

De fato, há uma inversão de valores. “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar”, cantou Wilson Batista e Haroldo Lobo (1910-1965), isso de fato é o que todo homem quer. A mulher é necessária na vida de um homem. Raros são os que vivem sozinhos.

Mesmo quando a mulher rompe totalmente com esses vínculos, a sociedade a condena. É inadmissível uma mãe abandonar os filhos, enquanto se tolera que um pai passe anos sem ao menos saber notícias de seus rebentos. Também, há uma busca equivocada da mulher em relação à sua sexualidade. Ou se reprime demais ou abusa de liberdade, o que Herbert Marcuse chamou de “dessublimação repressiva”, pois, no passado, a mulher tinha que se vestir demais e, agora, a moda é despir, falar abertamente de sexo livre; um comportamento um tanto quanto masculino, abusivo e até vulgar.

Na tentativa de se vingar do homem sendo um homem, as mulheres estão deixando de buscar a essência e a autoria do discurso feminino. Não é progresso uma mulher de negócios, executiva, receber um garoto de programa em seu escritório, tal qual fazem os homens. Tal atitude é avessa à visão que a mulher verdadeiramente mulher, verdadeiramente feminina tem em relação à sua sexualidade. É apenas vingança. Tal fato não significa progresso moral ou adiantamento, apenas um fetiche.

A questão da sexualidade da mulher no Brasil vem sendo discutida há séculos, desde a nossa colonização. A primeira camada da população brasileira se formou em cima do corpo da índia. Os portugueses faziam os filhos e abandonavam as índias e os mamelucos ficavam com os outros índios. O sertanejo autenticamente brasileiro é originário desta mestiçagem que se completou, depois, com as escravas que vieram da África.

Gilberto Freyre (1960-1966) destacou, com propriedade, que a mulher branca era para o casamento, a negra para o trabalho e a mulata para o sexo, haja vista como isso se propagou na música, na literatura e nas artes, inclusive na televisão com a “Garota Globeleza”. Ataulfo Alves (1909-1969), completamente anacrônico, cantou: “Ai meu Deus, que bom seria/se voltasse a escravidão/eu comprava essa mulata e prendia no meu coração.”

Dentro do próprio gênero feminino há outro resgate maior ainda, a mulher negra e pobre que hoje são as maiores vítimas da violência, pois como destacou Rose Marie Muraro “debaixo de um homem pobre e oprimido há uma mulher miserável e esmagada” e a profética frase de Simone de Beauvoir: “A mulher é sempre proletária do homem.”

O fenômeno da violência grassa entre nós. A violência contra a mulher está enraizada no tecido social, disseminada na esfera pública, embora haja tantas leis. O antigo “lar, doce lar” pode ser chamado hoje de “lar, violento lar”. E todas as conquistas só foram possíveis a partir da década de 1970, pois, antes, havia uma invisibilidade quanto à questão da violência contra a mulher.

Matar a mulher por “questão de honra” era comum. Uma mulher que se perdia maculava toda a família. Ou devia morrer ou seguir a vida de prostituta. Havia uma legítima defesa em relação ao homem que “matava por amor”. Exemplos clássicos foram nas mortes de Claudia Lessin Rodrigues, Ângela Diniz e Eliane de Grammond.

Do abominável julgamento de Raul Fernando do Amaral Street de seu crime em assassinar Ângela Diniz em 30 de dezembro de 1976 em Búzios ficou a estarrecedora sentença que inocentava o assassino porque Ângela tinha má conduta e por isso “precisava morrer”.

Muitas Angelas continuam sendo assassinadas todos os dias e de diferentes maneiras. Mesmo na literatura, um fim bom para a heroína é a morte: Flaubert deu a Emma um copo de arsênico. Tolstoi deu a Anna Karênina as rodas de um trem. Eça de Queiroz deu a Luiza uma febre tifóide. Machado de Assis deu a Capitu uma morte solitária. Inocência morreu em plena febre de amor, que Taunay não iria perdoar “Inocência, coitadinha”…

E a lista assassina segue por páginas e páginas: Helena, apenas por tomar um chuvisco, não foi perdoada; o velho bruxo do Cosme Velho passou o facão. Iracema engraçou-se por um português e pulou na sepultura, deixando antes o fruto para o galante criar. Mesmo no modernismo, Diadorin veste-se de homem na saga eterna de Guimarães Rosa e Ana Terra é a própria terra gaúcha na pena magistral de Érico Veríssimo. Macabéia de Clarisse Lispector nos aterroriza. Anita, de Mário Donato, é a imagem da perversão tão bem explorada por Nelson Rodrigues que mostrou a mulher devassa em Engraçadinha, Bonitinha, mas ordinária, a Dama da Lotação e Meu destino é pecar.

E as repudiadas como Lenita de Julio Ribeiro, Rita Baiana de Aluísio Azevedo, Clara dos Anjos de Lima Barreto? Mas, não podemos esquecer as sensuais protagonistas que Jorge Amado eternizou: Tieta, Gabriela e Dona Flor valem toda a literatura. Graciliano Ramos pôs um revolver na mão de Madalena em São Bernardo e resolveu a situação. Hilda Furacão é um próprio vulcão de volúpia.

Mesmo na poesia, muitas não são poupadas: Essa Negra fulô remete ao papel servil da negra;  Ismália é louca, Lindóia morre, Severina é definição da própria morte, mesmo Mário de Andrade, tão lúcido e coerente, fez a moça despencar morro abaixo em “Serra do rola moça”, Manuel Bandeira em Pasárgada, quer namorar prostitutas bonitas e ter a mulher que quer, na cama que escolher. Mesmo nas infantis narrativas, Pollyana com sua cafonice e servidão é o símbolo da vaquinha de presépio.

Depois da década de 1970 as lutas feministas que se fortaleceram. Debates e mais debates foram feitos com passeatas por todo o Brasil e o mundo contra os crimes hediondos cometidos contra mulheres. A temática do gênero passou a ser colocada no discurso social. A mordaça foi arrancada. Mesmo assim, ainda hoje persiste uma idéia negativa em relação à mulher emancipada. Livros didáticos trazem sempre a idéia de uma subordinação da mulher aos misteres domésticos, mesmo nas cartilhas de alfabetização.

Mesmo também dentro da luta feminista, hoje há uma cisão interna: devemos lutar pelos direitos da mulher negra, lésbica, trabalhadora rural, imigrante, prostituta, seviciada, detenta, criminosa, criança do sexo feminino estuprada. O processo ainda é mais doloroso do que se pensa.

No cotidiano do tempo episódico o diariamente dos heróis sempre teve registro. Cadê a voz dos anônimos e excluídos? Há sempre uma página em branco na história das massas.

Mas há verdades possíveis em cada momento histórico. A mulher de hoje jamais será a mulher do porvir. É preciso buscar a documentação em recônditos e inimagináveis lugares geográficos e sentimentais. É preciso que a história se insira não só nos enunciados clássicos, mas na voz de quem viu, ouviu, sentiu, testemunhou os acontecimentos.

É necessário romper com o pensamento de uma mulher confinada no lar, criando valores de uso que satisfazem necessidades humanas básicas. A mulher deve assumir o seu papel de agente histórico, numa classe para si, independente do valor ou não do homem. O valor deve nascer primeiro dentro de cada mulher.

No tocante à profissionalização da mulher há um processo e concepção de papel subalterno na escolha de trabalho “certo” para o sexo feminino, como professora, costureira (modista impunha mais glamour), vendedora de cosméticos, gari, empregada doméstica, manicure. E todo o trabalho da mulher também foi visto como complemento de renda, como um “bico” para ajudar em casa.

Por séculos, houve mulheres completamente amordaçadas que calaram de si próprias. Foram nulas como se pouca importância guardassem. E mesmo para a conquista de emprego, para a mulher, diferentemente que para o homem, sempre contou a idade, raça, estado civil, aparência, número de filhos, possibilidade de gravidez e principalmente muita beleza física.

Quanto à mulher do campo em sua labuta diária e sem descanso ficou ainda mais invisível. Era apenas a obrigação e ajuda da companheira que madrugava e trabalhava no serviço pesado até a noite. Transformar-se em gari nas grandes cidades foi geralmente o destino das mulheres que migraram do campo numa absurda definição de que eram mais aptas que os homens por “serem mulheres e mais afeitas e hábeis no manejo da vassoura”. Termos como “motorista de fogão”, “esquenta o umbigo no fogão e esfria no tanque” fazem parte do nosso cotidiano lexical.

Agora é a vez da mulher criança, explorada e vilipendiada e que conhece todos os estágios da miséria. Muitas delas perderam todo o senso de dignidade “aquelas que só dizem sim” na canção de Chico Buarque e “se subiu, ninguém sabe, ninguém viu”, e há um falso e desumano consenso de que a prostituição é escolha livre do destino da mulher, que será como “boneca de trapo/pedaço de vida/que vive perdida no mundo a rolar” como frisou a canção de Adelino Moreira.

A mulher deve preparar para abrir caminhos entre as pedras, pois ela é indispensável à harmonia do universo. É sempre ela a eterna Eva, o enigma perscrutado e jamais decifrado, geografia de sua alma complexa. Alma banhada de sol e de abismos indevassáveis. Zonas abissais da alma da mulher que mantém-se no mistérios desde o princípio das eras.

É preciso pensar na mulher como agente da ação da mudança. Raras são as mulheres passivas e por isso são promotoras do desenvolvimento. O seu trabalho de contato com os outros é o prelúdio de compreender-se.

É preciso investir na mulher! Separar barreiras educacionais, investir no avanço social e promover o papel feminino como agente do desenvolvimento humano, capacitando lideranças comunitárias que servirão de ponte entre uma vida de servidão e o desenvolvimento pleno da dignidade humana.

 

“É necessário romper com o pensamento de uma mulher confinada no lar, criando valores de uso que satisfazem necessidades humanas básicas. A mulher deve assumir o seu papel de agente histórico, numa classe para si, independente do valor ou não do homem. O valor deve nascer primeiro dentro de cada mulher.”

 

“Por séculos, houve mulheres completamente amordaçadas que calaram de si próprias. Foram nulas como se pouca importância guardassem. E mesmo para a conquista de emprego, para a mulher, diferentemente que para o homem, sempre contou a idade, raça, estado civil, aparência, número de filhos, possibilidade de gravidez e principalmente muita beleza física.”

 

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Literatura e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura e Linguística pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG – [email protected])

 

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