Opinião

A sociedade atual e o reinado dos pilantras

Redação DM

Publicado em 29 de julho de 2015 às 22:17 | Atualizado há 10 anos

 

É sempre atual parafrasear o escritor inglês Francis Wheen, em razão da lucidez e ironia realista sore a estupidez contemporânea, na interessante obra intitulada Como a Picaretagem Conquistou o Mundo, Equívocos da Modernidade. De fato, a sociedade moderna depara-se e se insere na pilantragem como etilo ou norma de comportamento, como forma de assegurar a própria sobrevivência. Canalhas, picaretas, trambiqueiros, prevaricadores, dissimulados, mesquinhos, malandros de todas as estirpes, função ou classe social, regozijai-vos! Enfim, o mundo, indiscutivelmente, pertence a vocês. Dais, com brado forte, vivas à plenitude, ao totalitarismo, ao reinado absoluto da república dos canalhas, dos patifes. Nesse reino, onde o deleite, todos os prazeres, todas as volúpias, pertencem e são privilégios exclusivos dos cínicos e dos velhacos, deve haver a caça e o sufocamento impiedoso a todos aqueles que possam oferecer alguma ameaça a esse novo estilo de funcionamento e característica da sociedade. Morte aos que não caminham dentro do círculo que delimita o pensar, o agir. O modo de ver, de pensar, de agir, deve obedecer a uma lógica, às leis do senso-comum, dos jargões, dos politicamente corretos. Portanto, repressão total àqueles que ousam ter opinião própria ou se coadunam com opiniões tidas como “desviantes”, aos contestadores, aos que filosofam. É preciso criar uma sensação de “normalidade” no reino da patifaria. Um trabalho de “propaganda de guerra” (aquela na qual a primeira incumbência é o assassinato da verdade e a eliminação do que indagam ou contestam) é uma providência imediata e contínua, de forma não apenas de manter o adestramento, mas de enaltecer a “grandeza” e a prevalência daqueles que reinam. Esse reinado dantesco é reservado às pessoas como líderes religiosos, sanguessugas patológicos dos exércitos de zumbis, fiéis inebriados e hipnotizados, portadores da doença da insuficiência inteligível ou da capacidade cognitiva. Em que país, onde a sociedade é medianamente lúcida, o Parlamento seria comandado, tanto na Câmara Baixa, quanto na Câmara Alta, por dois malandros delinquentes públicos, formalmente investigados por “suspeitas” de roubos milionários contra os cofres públicos? Esses pilantras, ainda assim, são ovacionados pela elite social e financeira como sendo os heróis do reino, a ponto de serem cotados para substituírem a presidente legitimamente eleita e contra a qual não pesa nenhuma denúncia formal de corrupção. Para tanto, elucubram-se, mefistofelicamente, no sentido de levarem a cabo um golpe político obstinadamente arquitetado contra a democracia brasileira. Só em uma pátria de picaretas é possível ter na composição do Parlamento grupos que formam o que há de mais retrógrado e nefasto no plano das ideias, como as tais bancadas “da bala”, formada por policiais (alguns com visíveis sinais patológicos de psicopatia ou esquizofrenia) em defesa de seus projetos delirantes de poder e instalação de um estado baseado no medo, na opressão, na repressão, impostos pela ideologia da coerção psíquica; e “da bíblia”, formada pelos malandros estelionatários da fé, os vendedores da salvação, aqueles que se consideram os ungidos, os enviados de Deus para ditarem aqui na terra normas sobre como devemos nos comportar, como criar nossos filhos, o que fazermos com nossos sentimentos e até como, com quem e quando devemos ou podemos transar. Mas o reino dos picaretas não se resume ao plano político institucional. Ele alcança a todos os segmentos sociais. Os picaretas, homens e mulheres, proliferam-se e atuam sob diversas espectros. Até mesmo decisões judiciais, não raramente, são produzidas para atendê-las. Foi amplamente reproduzida na imprensa e nas redes sociais a notícia sobre uma decisão peculiar. Aliás, “justiça” seja feita, o juiz ou juíza que profere uma decisão dessa não o faz sem estar imaginando, antecipadamente, qual será a repercussão midiática do seu feito. Muitas decisões são informadas, prioritariamente, aos órgãos de comunicação midiática e redes sociais para, só posteriormente, serem informadas, formalmente, aos sujeitos do processo e a sua publicação em veículo de publicação oficial. É o tipo de decisão judicial dirigida não às partes ou aos sujeitos processuais, mas ao grande público, aos ávidos por circo, aos integrantes da sociedade do espetáculo da modernidade medíocre. Em um desses casos, um pai é condenado a pagar indenização ao filho adulto nascido de uma transa sexual ocasional, sem coabitação e nenhum vínculo afetivo entre os copulantes. A indenização, segundo a juíza, justifica-se em razão de o pai não ter amado o filho, limitando-se, “apenas”, a suprir-lhe a necessidade material. Como assim? Ao que parece o pai não amou nem a companheira, em um ato de mero “animus copulandis”, sem qualquer “animus gerandis”, sem “uoluntas possit amare”. Na mentalidade da juíza o amor pode surgir de um simples ato de vontade, uma opção mecânica acionável em um botão com função on/off. Como o pai não ligou a função “amar o filho não programado, não esperado, não desejado”, foi condenado a indenizá-lo por danos morais. Outro caso emblemático de acolhida institucional das pilantras e da pilantragem é o de uma mulher que resolveu, de livre, espontânea e safadística vontade, ser amante de um homem casado. E assim o faz, durante muitos anos. Nesse período, excitada pelo prazer proporcionado pelos presentes que recebia e pela fantasia, o fetiche, a sensação, de transar com o marido da “amiga”, foi muito feliz e realizada na condição de puta consorte. Em outros tempos, não muito distantes, e em outras sociedades, também não muito distantes, essa mulher seria confrontada com valores éticos e a própria dignidade como pessoa. Sofreria, por certo, não apenas alguma reprimenda moral, mas uma condenação por uso indevido da instituição judicial. Entretanto, foi prontamente endeusada e transformada em “vítima” de “uma sociedade machista”, sendo beneficiada com uma pensão alimentícia vitalícia. A esposa traída, por sua vez, não bastasse a decepção sofrida, também foi hostilizada nos argumentos em favor da concubina. Em outro caso judicial foi ainda pior: a prostituta consorte abocanhou a metade dos bens deixados pela “de cujus” por ter sido dele amante por alguns tempos, em prejuízo dos filhos e da verdadeira esposa que, verdadeiramente, contribuíram para com a construção do patrimônio. Alguns juízes estão dispostos a adequarem suas decisões às exigências e peculiaridades dos tempos modernos: o espetáculo. Uma mulher casada tem um filho fruto de uma aventura sexual extraconjugal. O filho cresce e o marido traído descobre que fora enganado, separa-se e recorre ao judiciário para anular o registro de paternidade. A juíza nega, alegando que isso traria traumas psicológicos ao filho. Então a mentira da mãe, sustentada por tantos anos e em prejuízo de toda a família, inclusive negando ao filho o direito de saber quem é seu verdadeiro pai, não traz abalos psicológicos? E o dever moral que tem os pais em ter uma relação de transparência e honestidade na relação como exemplo na educação dos filhos? No mundo da pilantragem surge uma nova modalidade de “notoriedade profissional”. Pessoas com muito talento para a dissimulação têm sempre alguém da mesma índole prontos a dar-lhes as mãos. Existem empresas que criam premiações mentirosas para insuflar as vaidades de alguns sedentos por visibilidade. No ramo da advocacia, criam-se “premiações” que, em verdade, são vendas de “homenagens”. Empresinhas caça-níquéis oferecem a venda de homenagens do tipo “advogado revelação”, “notórios do Direito”, “melhor advogado”, etc, e ganha quem se propor a pagar mais. Mentem dizendo que se trata de uma pesquisa de “opinião pública” quando, em verdade, trata-se de um comércio e “ganha” quem compra. Nada tem a ver com o real respeito e reconhecimento público ao trabalho do profissional. Trata-se, tão somente, de uma mentira, um tabuleiro de ilusões, construídos menos para iludirem-se a si mesmo, mas muito mais para iludirem aos incautos, passando a aparência de serem, de verdade, merecedores de tais referências. A tal “honraria” não é m reconhecimento; é uma aquisição mercadológica, encomendada e paga com a finalidade de enganar. Mas, em tempos de superficialidades, o público que adquire e consome mentiras e ilusões é farto. Os pilantras têm o mérito de nutrirem-se de si mesmos, numa espécie de necessidade e dependência mútuas. A impressão que se tem é a de que existem pessoas que padecem de alguma anomalia que os impele a serem constantemente enganadas. Há uma atração irresistível entre os pilantras que, por vezes, eles se transmutam, alternadamente, em vítimas e algozes, com uma forma de sobrevivência da própria espécie. Há dois adágios universais que perfeitamente se amoldam a esse ajuntamento social moderno: “Facilmente os iguais se unem aos seus iguais” e “um gambá beija o outro”. Desta forma, o egoísta, o sonegador, o pilhador, o desumano, é o mesmo que não se constrange, mas o faz com altivez, em enriquecer os exploradores da fé, doando consideráveis quantias – sob o epíteto de “dízimo”, aos pastores e igrejas, que se tornam cada vez mais ricas e prósperas – na esperança de estarem comprando a salvação e a remissão dos pecados. Pilantras elegem pilantras, que associam-se à pilantras, que enganam outros pilantras, que financiam outros pilantras, que apadrinham politicamente outros pilantras, que fazem pilantragens juntos no reino da pilantragem. Ainda fazendo referência ao fértil mercado da ilusão e da mentira, há uma modalidade dessa picaretagem que é financiada com o dinheiro do contribuinte. É comum – e parece que se trata da principal finalidade institucional, dada à quantidade de casos – as casas legislativas (câmaras federal e municipais, senado, assembleias legislativas) e os executivos gastarem fortunas com cerimônias de outorgas de títulos e honrarias “pelos relevantes serviços prestados”. Os agraciados são, geralmente, “ilustres desconhecidos”, sem nenhuma notícia de algum ato heroico que justifique a comenda, salvo o fato de ser amigo, familiar, comparsa político, financiador de campanha de algum político. A picaretagem, na obra de Wheen, refere-se à erosão do bom-senso e à valorização de banalidades em planos tão diferentes quanto a política, os negócios e a cultura de massa. No Brasil, a picaretagem tem se convertido em uma forma de estrutura e cultura social, atingindo níveis insuportáveis que exigem o imediato rompimento com essas ideias e a eleição de novos paradigmas sociais, como condição de assegurar a própria sobrevivência do ser humano em sociedade, pondo fim ao estado de guerra de todos contra todos.

 

(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista –[email protected])


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