Opinião

Saudade, polêmico substantivo concreto

Redação

Publicado em 13 de julho de 2015 às 22:46 | Atualizado há 10 anos

Na escola se aprende que substantivo abstrato é tudo aquilo que não se pode pegar, como a raiva, o ódio, o amor, a paixão, o medo e a saudade. Mas desafio os gramáticos para elaborar um conceito diferente sobre o sentimento de saudosismo, recordação do passado. Temos saudades de fatos recentes ou remotos de nossa vida, e um dia todos nós seremos a própria expressão deste sentimento. Temos saudades de quando o Brasil tinha o melhor futebol do mundo, da Amazônia preservada, dos alimentos sem química suspeita, da mulher que jurou ser honesta, da poesia declamada com emoção, dos políticos dizendo a verdade, da visita à casa dos amigos, da união da família, da boa música sertaneja, do emprego conquistado com meritocracia e outros exemplos. É um sentimento que marcou época, religião, amores, contrastes, ídolos, encontros. E você, leitor, tem saudade de quê ou de quem?   O que marcou a sua vida ou casamento? Vale a pena recordar?

Dizem que o ser humano é saudosista por natureza, e à medida que envelhecemos vivemos mais do passado de que das vivências atuais. As fotografias  ilustram a tese elaborada. Mas um homem sem este substantivo abstrato e ao mesmo tempo tão concreto, não é digno de suas origens. Pensar, amar, trabalhar, cultivar uma paixão, ilusão, buscando nos olhos de Deus o reflexo do que fomos ou somos. De repente, um fato entra para a História e nem conseguimos refletir, curtir, entender as suas dimensões. Os mais experientes dizem que o tempo é o senhor da razão, embora a juventude só queira viver da emoção do beijo roubado ou do 10 na prova de matemática. Quem jamais sentiu saudades, provavelmente não viveu, passou pela vida e não teve encanto, vibração de seu passado. Com a moderna tecnologia, usamos um celular avançado na mão esquerda e uma agenda eletrônica na mão direita, catalogando todos os fatos corriqueiros ou especiais de nossa vida. E como estava o mundo quando o Brasil foi descoberto? Haveria um museu ambulante para cada homem?

Um pensamento clássico afirma que “quando esperamos, segundos são séculos; e quando recordamos, séculos são segundos”. O tempo passa, mas a taxa de embarque nos custa muito caro. Jovens têm saudades dos conjuntos de rock, da bebida da moda, da namorada que ele julgava especial, das festas na casa dos amigos. Os adultos e idosos têm saudades dos pais, da dança de rosto colado, do fio da barba ou bigode valendo mais que muitos documentos, da virgindade da moça e do romantismo do rapaz. Cada ser relembra suas aventuras e vitórias, catalogando com carinho suas proezas ou tristezas no túnel mágico do tempo. O nosso inconsciente é a fonte de todas as alegrias, amarguras e recalques, explicando até mesmo a origem de muitas doenças. Tudo é registrado em detalhes, deixando margens para interpretações futuras. É preciso amar para depois sonhar, buscar o detalhe escondido na curva do momento. Os livros de História registram os acontecimentos, e dei minha contribuição ao processo quando em 11 de setembro de 1999 lancei o documentário Saudade Jovem, livro publicado pela Editora Kelps, de Goiânia. Escrever é resgatar o passado, valorizar o presente e projetar o futuro no doce balanço de um relógio imaginário. Por analogia e mesmo capricho do destino, sentimos saudades dos grandes amores de nossa vida, embora o tempo prove se foi realmente amor ou ilusão, peneirando o que valeu a pena.

Na análise gramatical a saudade será sempre substantivo abstrato; na prática, os políticos, torcedores, empresários, sonhadores, lutadores, jogadores, críticos julgarão que é um substantivo concreto. E vem à tona a lembrança da professora que pediu ao aluno um exemplo de substantivo abstrato, e o Joãozinho respondeu: “Uai fessora, substantivo abstrato é tudo que não se pode pegar, então a calcinha da senhora é um exemplo…”

No balanço das horas tudo pode mudar, e todos serão passageiros da mágica máquina do tempo. Ah, saudades de quando o Túlio Maravilha era artilheiro do Goiás e do Vila Nova! E saudades também das pernas bem torneadas da Maria Guilhermina. E você, como curte a sua saudade? Deixo para o leitor e para os gramáticos a definição se ela é um substantivo abstrato ou concreto. O resto é balela, fica aqui a reflexão saudosa do Lela.

 

(José Carlos Vieira, escritor, jornalista do Jornal Folha da Cidade, Rio Verde – E-mail [email protected])

 

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