Artigo: Por que não posso perdoar Dylann Roof
Diário da Manhã
Publicado em 25 de junho de 2015 às 05:05 | Atualizado há 10 anosNão perdoo Dylann Roof, o terrorista racista cujo nome odeio dizer ou saber. Não tenho nenhuma ligação direta com o que aconteceu em Charleston, na Carolina do Sul, na semana passada, a não ser minha humanidade e minha negritude, mas não me vejo perdoando esses crimes nunca e me sinto perfeitamente à vontade com essa escolha.
Minha relutância em perdoar esse homem não lhe dá nenhum tipo de poder; não odeio esse homem porque ele está abaixo até do meu desprezo; não acredito na pena de morte, então não quero vê-lo morto. O perdão que nunca lhe darei serve para lembrar que há atos tão terríveis que têm que ser reconhecidos como tal. Temos que admitir que estão além de qualquer tipo de absolvição.
Brigo com a minha fé, mas fui criada no catolicismo. Creio em um Deus de amor, mas não entendo por que esse sentimento não é poderoso o suficiente para nos salvar de nós mesmos. Quando criança, aprendi que o perdão exige reconciliação através da confissão e da penitência. Temos que admitir nossos pecados. Temos que repará-los. Quando ia me confessar toda semana, contava ao padre meus delitos infantis – as brigas com meus irmãos, as palavras feias, todas as pequenas infrações de uma garota protegida do Nebraska. Quando não tinha nada para confessar, inventava alguma coisa, o que também não deixava de ser pecado. A seguir, ajoelhava em um dos bancos e, durante a penitência, pensava no que tinha feito de errado e tentava melhorar. Não sei quantas vezes consegui fazer isso.
Sempre sonhadora, passava quase toda a missa de domingo perdida na minha própria imaginação. Porém, a oração de que nunca me esqueci foi o “Pai Nosso”, principalmente o “Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Sempre pensei nesse trecho. É uma boa ideia poder perdoar aqueles que cometem os mesmos pecados que nós, mas é óbvio que deve haver um limite. É óbvio que determinados pecados a maioria não cometeria. E aí, como fica?
Para mim, perdoar não é fácil. Aceito essa falha de caráter muito bem. Tenho mais má vontade ainda com aqueles que não mostram nenhum arrependimento, não demonstram nenhum interesse na reconciliação. Não acredito que, desde o ataque, tenha havido tempo suficiente para o perdão. Os mortos ainda estão sendo enterrados. Ainda estamos tentando guardar seus nomes: Cynthia Hurd, Susie Jackson, Ethel Lance, DePayne Middleton Doctor, Clementa C. Pinckney, Tywanza Sanders, Daniel L. Simmons, Sharonda Coleman-Singleton e Myra Thompson.
Ainda estamos tentando memorizá-los, mas os familiares que amavam essas pessoas já perdoaram Dylann Roof. Deram seu testemunho no tribunal, menos de 48 horas depois do trauma de perderem seus entes queridos de maneira tão brutal. Alana Simmons, que perdeu o avô, disse: “Embora meu avô e as outras vítimas tenham morrido nas mãos do ódio, o fato de todos pedirem por sua alma prova que eles viveram no amor e deixaram um legado do mais puro sentimento”. Nadine Collier, que perdeu a mãe, disse: “Você me tirou um bem precioso. Nunca mais vou poder conversar com ela, nem abraçá-la, mas eu o perdoo e tenho piedade pela sua alma”.
Respeito profundamente as famílias dos nove mortos, que conseguiram perdoar esse terrorista e seu racismo assassino. Não consigo nem imaginar, porém, como são capazes de tamanha misericórdia eloquente, tanta clemência em um momento tão difícil.
Nove pessoas foram mortas. Nove negros foram mortos. Foram assassinados em um ataque terrorista.
Ao longo do fim de semana, os jornais do país estamparam nas manchetes o perdão das famílias das nove vítimas. A narrativa da maior parte da imprensa adotou essa ideia de relevar, dando a impressão de acreditar que, se perdoarmos, o incompreensível pode começar a fazer algum sentido.
E fomos lembrados também do poder da brancura. Como era de se esperar, além da história do perdão, a mídia tenta humanizar o terrorista; tenta entender o ódio de Dylann Roof – sim, porque tem que ter uma explicação para um ato tão abominável. Na audiência para estipulação da fiança do atirador, o juiz, que foi repreendido uma vez por usar a palavra “negro” (extremamente ofensiva em inglês), disse que não só os nove mortos e seus familiares foram vítimas, mas também a família do terrorista. Não há limites para o poder da brancura quando se trata de pedir misericórdia.
A demanda pelo perdão é um refrão dolorosamente familiar quando se trata de sofrimento negro. Os brancos adotam a narrativa fingindo que o mundo é muito mais justo que a realidade e que o racismo é um mero vestígio de um passado doloroso, e não parte imutável do nosso presente.
Os negros perdoam porque precisam sobreviver. Temos que desculpar vezes sem conta enquanto o racismo e/ou o silêncio dos brancos em relação a ele continua. Temos que relevar a escravidão, segregação, as leis como a Jim Crow, a desigualdade em todos os aspectos, o encarceramento em massa, a alienação eleitoral, a representação inadequada na cultura popular, as microagressões diárias e muito mais. Perdoamos e perdoamos e perdoamos e aqueles que nos tem ofendido continuam a fazê-lo.
O racismo de Roof, visceral, foi gerado de contornos tortos. Nasceu de uma cultura na qual temos que gritar constantemente “A vida do negro tem importância!” porque não há muita evidência do contrário. Esse terrorista cresceu nessa instância. Fazia piadas racistas com os amigos. Disse o que ia fazer para o companheiro de quarto. É muito mais fácil jogar o perdão na conversa do que conviver com a realidade e encarar que todos são cúmplices.
O que os brancos realmente querem quando pedem o perdão de uma comunidade traumatizada é a absolvição. Querem ser absolvidos de um racismo que contamina a todos nós, embora o perdão não possa anular os pecados racistas dos EUA. Querem ser absolvidos pelo silêncio em relação a todas as manifestações de racismo, grandes e pequenas. Querem acreditar que é possível superar um trauma tão profundo e duradouro porque não conseguem encarar as feridas abertas que o racismo criou em nossa sociedade. Só que eu cansei de perdoar.
Roxane Gay, autora de “An Untamed State” e “Bad Feminist”, contribui regularmente com o ‘NYT’