Opinião

Confesso que vivi as tensões e o encantamento de ser médico

Redação DM

Publicado em 10 de junho de 2015 às 02:56 | Atualizado há 10 anos

 

O ano? Não me lembro com exatidão; sei, com certeza, que estávamos vivendo a década de 1970, minha certeza advém do fato de que estava voltando de um curso de pós-graduação de seis meses  que havia feito em Londres em 1972.

Dr. Eduardo Jacobson, meu grande amigo e colega de docência na Faculdade de Medicina da UFG, na época Chefe do Departamento de Cirurgia, havia me pedido que fizesse um relato oral para o nosso Corpo Docente, da experiência que vivi no Hospital Saint Marks de Londres, naquela época um dos poucos hospitais do mundo especializado, exclusivamente, em doenças do colo, reto e ânus (Coloproctologia);  dentre outros tópicos, expus os novos conceitos e novas aparelhagens usados no diagnóstico e tratamento de lesões congênitas anorretais.

A nossa Faculdade de Medicina já possuía, naquela época, um  dos aparelhos que poderia ser utilizado para o diagnóstico de algumas das doenças congênitas do intestino, porém, estava sendo usado apenas para estudar o esôfago; a história da presença deste aparelho na nossa faculdade é uma epopéia protagonizada pelo falecido Prof. Joffre Marcondes de Rezende que em outra oportunidade a contarei com detalhes, por hora basta dizer que o Dr. Joffre o recebeu como doação de uma Universidade dos EE. UU,   para pesquisar a doença de Chagas no esôfago. As fotos que ilustram o texto exibem o antigo  aparelho e o atual.

Em Londres aprendi a manusear este aparelho e quando voltei o Dr. Joffre convidou-me para uma parceria nas suas pesquisas sobre a doença de Chagas, acrescentando, agora, o estudo da doença no intestino; nos intervalos, dando sequência ao que aprendera em Londres, passei a estudar com aquele aparelho as anomalias congênitas do intestino.

Após terminada a sessão, Dr. Jacobson falou-me, reservadamente, que gostaria que eu fosse ao seu Hospital Santa Luiza (localizado na esquina da Avenida Goiás com a Paranaíba, onde  hoje existe um estacionamento), para examinar uma criança que havia sido internada há alguns dias, vinda da cidade de Edeia.

Antes de falar sobre o caso clínico da “Wania”, preciso fazer uma referência mais estendida a respeito do meu relacionamento com o Dr. Eduardo Jacobson; conheci-o por intermédio do meu imorredouro amigo e concunhado, Dr. Oton Nascimento que pediu-lhe, em uma oportunidade  que, se pudesse,  desse uma ajuda ao jovem médico que havia recém-chegado a Goiânia e por não conhecer nenhum médico, estava tendo dificuldade para deslanchar na profissão.

Dr. Eduardo era um cirurgião muito respeitado no meio médico e, principalmente, pela coletividade goianiense, seu hospital, o Santa Luiza, era considerado, na época, o melhor e mais bem equipado de Goiânia, tendo sido o primeiro a possuir um aparelho de Rx e, também, um dos primeiros a ter um anestesista exclusivo, Dr. Bruno de Oliveira Torres, tal era o volume de casos de cirurgias que era realizada no seu centro cirúrgico.

Apesar do fato de ter sido apresentado a ele pelo Dr. Oton, a quem ele dispensava grande amizade, Dr. Eduardo era parcimonioso na indicação de pacientes para o jovem e inexperiente cirurgião, tendo em conta, também, o fato de que ele era um renomado e famoso, não só em Goiânia como em todo o estado de Goiás,  cirurgião do aparelho digestivo, um dos poucos, na época, Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

Aquela minha apresentação no Departamento de Cirurgia trouxe-me o beneficio de convencê-lo, de maneira definitiva, de que o jovem cirurgião  havia voltado do exterior com novos conhecimentos na especialidade, aquele “caso” que ele pediu-me que  examinasse no seu hospital, teve o condão de abrir-me, definitivamente, as portas do seu hospital para que eu pudesse atuar na minha especialidade e consequentemente, tornou-se uma vitrine das minhas atividades – especialista em coloproctologia.

Quando cheguei ao quarto onde estava internada a “Wânia” (o primeiro, logo depois da porta de entrada do hospital), percebi a tensão que causou a presença de um jovem cirurgião no reduto do Dr. Eduardo; após as apresentações, tive a certeza de que “Pedro” e  “Dona Fia”, pais da paciente, estavam um pouco cismados com os rumos que o caso da sua filha estava tomando.

“Wânia” era uma menina de mais ou menos 6 anos de idade, branquinha, rostinho meigo e bonito, cabelos cacheados, olhos vivos, embora tristes; na sua inocência acompanhava, atentamente, o que eu discutia com seus pais, depois de ouvir os seus reclamos (passava até 20 dias sem evacuar o que lhe causava muitas cólicas no abdome), examinei-a e constatei que o seu abdome estava distendido (abaulado) e à percussão (com uma  das mãos estendida sobre o abdome, o médico bate, delicadamente, com o dedo médio da outra mão por sobre os dedos da mão estendida)  constatei timpanismo (som que  sugere presença de gases).

Diante do quadro clínico e a radiografia que já havia sido feita a pedido do Dr. Eduardo, fiquei com o diagnóstico provisório de megacolo congênito (dilatação do intestino grosso de origem congênita), precisava confirmar esta hipótese e um dos exames mais precisos, segundo havia aprendido em Londres, era a eletromanometria (estudo da atividade motora – movimentos  do intestino) que poderia e foi feito  na aparelhagem da Faculdade de Medicina a que referi acima.

Confirmada a hipótese diagnóstica, “Wânia” foi por mim operada  e, graças a Deus, o resultado foi muito bom; acompanhei-a durante algum tempo no consultório, constatando sempre que o ritmo intestinal havia se normalizado e posteriormente, pelo menos uma vez por ano, “Dona Fia”, “Pedro” e “Wânia” traziam-me presentes da sua fazenda ( doces, leitoas, frangos, frutas etc.), depois foram, paulatinamente, “sumindo”, até que não mais apareceram.

Alguns anos mais tarde encontrei “Dona Fia” em plena Avenida Goiás, fizemos uma festa! “Wânia” havia se casado e lhe dado uma neta e o “Pedro” continuava na sua labuta com a fazenda; despedimos com alegria. Sei que falamos pouco, parece que tínhamos tanta coisa a dizer um ao outro, talvez relembrar aquela fase tão aflitiva que vivemos, das noites e mais noites que passei ao lado do leito da “Wânia”, tendo sempre a sua figura ao  meu lado, sempre com olhar de esperança; não falamos nada disto, talvez teria que ser assim mesmo e agora posso repetir estes versos de Fernando Pessoa – “Há tanta suavidade em nada dizer/E tudo se entender”.

Sei que, de alguma maneira, com a ajuda do Grande Arquiteto do Universo, sou o responsável pela presença da neta de “Dona Fia” e “Pedro”, por isto peço a Khalil Gibran que fale por mim – “A neve e as tempestades matam as flores, mas nada podem contra as sementes”…

A vida é a arte do encontro, um dia encontrei “Wânia” e minha vida profissional mudou!

 

(Hélio Moreira,  membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

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