Opinião

Coração de caipira urbano

Redação

Publicado em 8 de maio de 2015 às 01:37 | Atualizado há 10 anos

– Soube que você tomou um susto semana passada.

– Verdade. Tive uma arritmia.

– O que o médico disse?

– Eu estou com a pressão um pouco alta, meio oscilante.

– Problema do coração?

– Provavelmente.

– Está melhor agora?

– Devo ficar. Os exames não foram bons.

– O que acusaram?

– Triglicérides altos. Mais que o dobro do recomendado.

– Problema com colesterol também?

– Mais ou menos. Um pouco acima. Mas há indícios de que podem entupir a tubulação. Aí, você sabe, eu desço uns palmos abaixo do chão. Fiquei com um baita medo.

– É compreensível. O que o médico lhe receitou?

– Pouca coisa. Basicamente, preciso tirar a bunda do sofá para praticar exercícios e conter a alimentação.

– Eu sempre o vejo caminhando no parque. Não resolve?

– Ajuda. O negócio é a alimentação.

– Cortou muita coisa.

– O médico me deixou menos caipira.

– Não entendi.

– Como você sabe, sou do interior. Morei na fazenda até a adolescência. Adquiri os hábitos da roça.

– Fã de comida pesada, certo?

– Por aí. Pelota com torresmo. Costela no bafo. Feijão cozido na banha de porco. Polenta frita. Essas coisas.

– Isso mata, cara.

– Foi o que o médico disse. Eu estava aterrorizando meu coração. Meu sangue estava grosso como vitamina de abacate. Não quero empacotar por agora.

– Então, só saladinha.

– E carnes magras.

– Tudo para levar uma vida saudável.

– Eu gosto de comida leve, sabe?

– E por que essa tristeza?

– É como se eu tivesse que abrir mão de mim.

– O médico o impediu de comer comida caipira?

– Não. Pediu para dosar. Uma colher de sopa disso, uma de chá daquilo. Amarras, bicho. Não serve para mim.

– Eu me lembro que você comia como um ogro.

– Que seja. Mas é como se eu fosse menos goiano. Bom era ir ao almoço de família no final de semana e deitar a mandíbula no pernil. Agora, tenho que comer como mocinha.

– Isso não tem nada a ver.

– Vou ficar magrelo.

– Vai lhe fazer bem.

– Foram décadas investindo em boa comida. Agora, é como se eu perdesse uma parte querida da minha personalidade. Vai ser difícil demais.

– Tente terapia. Há grupos de apoio que podem ajudar. Falar sobre a experiência pode lhe ajudar a aceitar a nova realidade.

– Sei não. Não custa tentar, certo? Vai que dá certo. O importante agora é aceitar a nova realidade que vida me impôs.

– Esse é um pensamento bonito.

– Não creio. É pura prostração ante a realidade.

– É um passo adiante.

– Tenho o coração de um caipira urbano.

– Isso significa algo?

– Sei lá. Pelo menos a frase é bonita.

 

 

(Victor Hugo Lopes,

jornalista)

 

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