A redução da maioridade penal é engodo político e um retrocesso social e jurídico
Redação
Publicado em 8 de abril de 2015 às 01:12 | Atualizado há 10 anosManoel L. Bezerra Rocha ,Especial para Opinião Pública
É lamentável e desolador ter de deparar com discussões que em qualquer sociedade civilizada é considerada superada e anacrônica, como a redução da maioridade penal. Não resta a menor dúvida de que a aprovação da PEC 171/93, na CCJ da Câmara dos Deputados, como o seu próprio número está a indicar, trata-se de um estelionato eleitoral e de um retrocesso jurídico, reflexo de uma sociedade mal informada, acrítica, desconectada de sua realidade social, propícia a ser manipulada por discursos fáceis de políticos demagogos. O individualismo da sociedade brasileira, acrescido à sua crônica ignorância, que a faz ter como fonte de “informação e formação de opinião” programas televisivos apresentados por analfabetos ou por quem pretende se promover eleitoralmente, que se nutrem da exploração sensacionalista da violência e das desgraças sociais da população pobre, torna-a cúmplice das mazelas políticas e sociais que tanto afetam os ideais de construção de uma identidade nacional e uma sociedade verdadeiramente cidadã. Uma sociedade mal informada, preconceituosa, discriminatória, subdividida em castas e que nutre um ódio patológico por quem não é considerado parte do seu ciclo social, está fadada a apoiar e a reivindicar a elaboração de leis de modo a intensificar a repressão penal contra aqueles que são por ela considerados “o inimigo”. Não é por acaso que essa ignorância fez a opinião sobre a redução da maioridade penal no Brasil alcançar o apoio de 93,7% da população de acordo com dados de 2013 da CNT (Confederação Nacional dos Transportes) e mais de 83%, com dados de 2014, de acordo com o IBOPE. Houve um tempo em que os estudiosos brasileiros acreditavam que os problemas políticos no Brasil, bem como nosso retardo civilizatório, com catastróficos efeitos em toda a sociedade, residiam na falta de acesso à educação. Lamentavelmente, parece que essa tese não é de assertiva absoluta. Gera perplexidade e estarrecimento ver pessoas que fazem parte de segmentos que são classificados como “elite profissional e social” no Brasil, manifestando-se como se vivessem na Idade Média ou em outros tempos mais longínquos da história da origem do homem e, sem nenhum constrangimento, mas até com certa dose de pedância e regozijo, dizem ser favoráveis à redução da maioridade penal, da prisão perpétua e até da pena de morte. É de causar profunda decepção, desalento e absoluta falta de perspectiva em uma sociedade melhor deparar com “operadores do Direito”, em todas as áreas de atuação, empenhados na defesa e na propagação do discurso simplório de maior intensificação nas respostas dos órgãos repressores. A incapacidade de pensar ou a indigência mental impele o indivíduo a atos de insanidade dessa natureza. Esses discursos, em sua grande maioria, são revestidos de hipocrisia e cinismo, pois, a sociedade que defende e clama por maior rigor punitivo contra a “clientela” do sistema penal, aqueles considerados “diferenciados”, é a mesma que se nutre, numa relação de simbiose e comensalismo, da corrupção endêmica e, em muitos casos, pandêmica. A sociedade que criminaliza a pobreza, que promove a estigmatização social, é a mesma que no seu dia-a-dia sobrevive de contumazes delitos. Entretanto, encastela-se em seus condomínios fechados, cercados de segurança privada e se camufla em roupagens de “insuspeitos cidadãos de bem”. Quem apoia maior rigor punitivo, através do método da repressão penal seletiva, é a sociedade delinquente, a mesma que convive e se mantém das fraudes em licitações, da sonegação, da apropriação dos encargos sociais descontados de seus empregados, do superfaturamento em serviços e obras contratados com o poder público; É o que se esconde atrás de formalismos protocolares e da sobriedade de sua função para prevaricar, como juízes corruptos, promotores ditos de “justiça”, cúpula das polícias, etc.; São políticos demagogos e corruptos, são segmentos de uma imprensa servil que sobrevive dos recursos públicos extorquindo políticos, mais particularmente os ocupantes de cargos eletivos, os que definem as pautas, selecionam o quadro pessoal dos profissionais, decidem o que pode e o que não pode ser publicado. Essa sociedade corrupta é a mesma que se sustenta enganando e roubando, descaradamente, o consumidor, nas mais variadas formas de consumo e utilização de produtos e serviços; É a que contrai financiamentos nos bancos públicos e não paga; São os caloteiros do “agronegócio” que elegem bancadas e representantes políticos, em todas as esferas dos poderes, para que sejam seus adidos na defesa de seus golpes contra o contribuinte e contra a nação, espoliando e locupletando-se dos recursos públicos. A simples discussão sobre a redução da maioridade penal, por si só, já deveria ser suficiente para nos envergonhar como sociedade. Em qualquer país civilizado, e que contasse com um povo medianamente consciente, temas dessa natureza seriam constrangedores, por estarem na contramão das aspirações civilizatórias, por serem contrários aos ideais da evolução humana em sociedade. A redução da maioridade penal é um retrocesso social, político, jurídico e nos ridiculariza perante a comunidade internacional. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tão ignóbil e incompreensivelmente criticado por obtusos de todas as vertentes, constitui-se em um paradigmático instrumento de prevenção, redução da violência e proteção à criança e ao adolescente – caso fosse efetivamente aplicado. O ECA não apenas serve de modelo para um número expressivo de países, mas é, inclusive, uma referência para a ONU (Organização das Nações Unidas), que o recomenda. O Brasil, como vanguardista nessa área, foi o primeiro a subscrever a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. No mundo todo, aproximadamente 70% dos países têm 18 anos como sendo a idade penalmente punível. Essa idade não é escolhida por acaso, de forma aleatória e sem critério. Ela é fruto de estudos científicos que analisam a formação e o desenvolvimento mental do ser humano. Em muitos países onde a idade penal foi reduzida perceberam que foi um grande erro e de consequências desastrosas. A Espanha é um exemplo disso e teve que voltar atrás em sua política de reduzir a maioridade penal como resposta à delinquência. No Brasil, é comum os “intelectuais de mesa de boteco” repetiram o jargão da “sensação de impunidade” quando, em verdade, o que existe de fato em nossa sociedade é “a certeza da imbecilidade social”. O Brasil já teve experiências em reduzir a maioridade penal. Ou seja, já tivemos a nossa porção de primitivismo jurídico. Talvez a ignorância de nossa sociedade em geral e, particularmente, daqueles que se dizem “cultos” ou “esclarecidos”, não permite saber que a idade penal, entre nós, já foi de 9 anos. O Código Penal da República (Decreto 847, de 11 de outubro de 1890), em seu artigo 27, prevê a imputabilidade penal aos 9 anos de idade. Oras, se já passamos por essa experiência e ela foi revelada catastrófica, obrigando o legislador a alterá-la em nossa Constituição, demonstra que a simples discussão sobre a volta da redução da maioridade penal já é um retrocesso. Ademais, enganam-se – ou querem enganar – aqueles que propagam que, atualmente, o menor de 18 anos comete crime e permanece impune. Não é verdade. Os únicos delinquentes que permanecem impunes e que, com isso, geram a “sensação de impunidade” são os governantes e a classe política em geral, que não cumprem com o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, necessário aos fins socioeducativos nele previstos, com os quais o Brasil se comprometeu como signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, da ONU. Os agentes dos órgãos da repressão penal estatal, como juízes e promotores que, mesmo tendo consciência das condições degradantes e contrárias aos fins socioeducativos dos centros de internações de menores, ainda assim continuam abarrotando com mais detenções e nelas mantendo, também se incluem essa relação de delinquentes impunes. Ademais, o adolescente, assim definido como aquele entre 12 e 18 anos de idade, é, sim, punido. A diferença entre a terminologia “pena”, utilizada no código penal para os acima de 18 anos de idade, e “medidas de proteção”, utilizada pelo ECA para os menores entre 12 e 18 anos de idade, é meramente de providencial confusão semântica. O mesmo diga-se em relação a “preso” e “recolhido”, espécies de mesmo gênero de hipocrisia. Quem quiser conhecer de perto a hipocrisia e o cinismo do poder público basta fazer uma visita aos chamados “centros de internação” para comprovar que não existe impunidade aos menores infratores. Ao contrário. São submetidos a situações degradantes, abusos, violências, as mais cruéis, sem quaisquer perspectivas de recuperação. O que os governantes e os políticos demagogos em geral pretendem com a redução da maioridade penal é proporcionar circo à uma sociedade ávida por espetáculo funesto, desviando-lhe a atenção para os reais e graves problemas que verdadeiramente nos afetam. Por outro lado, jogar crianças e adolescentes junto aos criminosos adultos na vala do esquecimento e da invisibilidade social dos presídios brasileiros, verdadeiras masmorras medievais, não é apenas sórdido e deprimente, é uma maneira simples e covarde que a classe política tem de furtar-se de suas responsabilidades concernentes ao real enfrentamento dos problemas do país e alcançar as soluções desejáveis. A sociedade, ao apoiar e aplaudir essa ignomínia, não apenas torna-se cúmplice, como converte-se em protagonista nesse processo de retrocesso civilizatório. Não por acaso, as forças políticas que capitaneiam as pautas mais abomináveis, como a redução da maioridade penal, agravamento de penas, prisão perpétua, pena de morte, criminalização das relações homoafetivas, repressão sexual, vigilância sobre a libido e genitália alheias, educação religiosa compulsória, fim da laicização do Estado, etc., representam o que há de mais obscurantista, primitivo, retrógrado, repugnante e inconcebível em uma sociedade moderna e civilizada. São sociopatas fanáticos e imbuídos da nefasta sanha de implementarem um panoptismo social. Esse segmento político, que se popularizou sendo chamado de “bancada evangélica” e “bancada da bala” – este último em alusão aos oriundos das forças policiais, que, valendo-se da visibilidade midiática sensacionalista e de péssimo mau-gosto que a função proporciona, aventuram-se como dublês políticos, porém, em defesa de interesses próprios ou de megalomanias patológicas – representam a falência do sistema político como um todo e simbolizam a degenerescência social e humana, abatendo nossas esperanças de sermos uma nação evoluída, com instituições e políticas verdadeiramente sérias.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – [email protected])