Janeiro e as Folias de Reis
Diário da Manhã
Publicado em 6 de janeiro de 2016 às 22:20 | Atualizado há 9 anosComo em outras regiões brasileiras, também no Vale do Paranã é comum a peregrinação das folias de Reis durante a quadra de Natal, que se estende até o dia 6 de janeiro, festa dos Santos Reis. As folias partem geralmente da zona rural e encerram seu giro na cidade, com festança e cachaçada. Entram de casa em casa visitando os presépios armados a um canto da sala de visita em forma de uma pequena gruta (daí a denominação Lapinha de Belém), com cobertura de folhagens e tendo ao centro uma pequena imagem do Menino-Deus. Muitas lapinhas são conservadas até para depois do dia de Reis, por amor de seus realizadores. Nessa quadra são também celebradas rezas e ladainhas junto às lapinhas, com distribuição de comes e bebes.
O poeta José Décio Filho, de Posse, em seu belo poema Terra branca (Poemas e elegias, 1950), define e evoca uma dessas festas do Menino-Deus do seu tempo de criança:
“O Natal não era mesmo Natal: era a festa do Menino-Deus. Eu ia assistir às lapinhas pelos braços da outra tia. E quando ia longe a noite ao som das ladainhas, suas mãos carinhosas alisavam-me o sono. Parecia a festa antiga do nascimento em Belém.”
Daquele tempo até hoje, parece que o Natal não mudou muito em certas localidades ao longo da fronteira de Goiás com a Bahia. E também não mudou o ritual da folia de Reis, matriz de outras folias, como de São Sebastião, de Santa Luzia ou do Divino Espírito Santo. Faz três décadas assistimos em Posse a uma demonstração da Folia de Reis de Seu Vicente de Souza (cenas a seguir ilustradas como as da folia de São Sebastião de dona Corina), em que só mudou o repertório, mas a forma e a composição da folia continuam a mesma.
O terno de Folia de Reis é composto geralmente por seis figurantes. A demonstração é dirigida por um juiz e o grupo de foliões (reiseiros) é comandado por um alferes. (Há outras funções menores que variam de folia para folia). O acompanhamento musical se faz com dois tambores, um grande (bumba ou zabumba), um tambor pequeno, violão ou viola, rabeca (espécie de violino precário), pandeiro e algazarra (canudo de arame, também chamado reco-reco ou rapa-rapa) que pode ser substituído por um prato doméstico esmaltado.
Evitam-se números ímpares de foliões na composição da folia, em razão de dançarem aos pares, contracenando um frente ao outro. Certa vez, perguntei ao saudoso Nego Adelino, por que a folia não poderia ser também constituída de número ímpar. Respondeu que é porque o número ímpar representa um elemento isolado – Entre três, um isola dois – e explicou: “As coisas da magia (para isolar alguém), são sempre feitas com número ímpar de 1 a 9. Por isso os feiticeiros se baseiam sempre em números ímpares.” Espichando conversa, mostrei a Nego Adelino que na concepção de Pitágoras (o sábio grego), o três é um número perfeito, porque reflete o equilíbrio do universo, três e seu múltiplo 9. Nego Adelino replicou que o número três provém da Bíblia: 1- Pai, 2- Filho, 3- Espírito Santo, mas na folia o ímpar não daria certo. E exemplificou: Jesus andou mais 12 apóstolos, um não prestou.
Voltemos à folia de Seu Vicente.
Vai começar o divertimento. Vicente Neves de Souza, juiz, dá sinal para Otávio dos Santos Araújo, alferes, este reúne os reiseiros (todos com uma toalha branca dobrada em cruz ao pescoço), se dispõem em forma semicircular frente à lapinha, ajeitam seus instrumentos e com voz alta e em dois registros, entoam o cantorio:
Deus vos salve essa Lapinha
E também casa de véu
Deus-Menino e sua Lapinha
Jesus Cristo está no Céu.
(Nota – quanto às demais estrofes, repete-se a melodia).
Deus vos salve essa Lapinha
Toda de fita enfeitada
Tem branca tem amarela
Tem vermelha encarnada.
Aos intervalos, dançam, sapateiam, saracoteiam, fazem evoluções num jogo de corpo gracioso, e a batucada esquenta, é o clímax do divertimento. Depois, retomando a postura inicial, prosseguem entoando a Cantoria da Lapinha:
Bendito louvado seja
O Santíssimo Sacramento
Já saiu os três Reis Mago
Da parte do Oriento.
(E definem):
O premêro trôxe ôro
Para seu Trono orná
O segundo trôxe incenso
Para seu Trono incensá
O tercêro trôxe mirra
Pra dizê que é mortá.
O canto segue descrevendo a Lapinha, enaltecendo o Menino-Deus nascido entre as palhinhas do chão, e os anjos reunindo-se no Céu e todos cá na Terra cantando para sempre, amém.
Entre noites de Natal
Não se dorme em corchão
Deus-Menino foi nascido
Entre as pahinha do chão.
Os anjos cantam no Céu
Cantam eles muito bem
Nós cantaremos cá na Terra
Para todo sempre amém.
O agradecimento
Depois da cantoria da Lapinha, os foliões fazem homenagem ao dono da casa, com improvisos espirituosos e criando trocadilhos (por exemplo, em Posse, um reiseiro exclamou, olhando para o teto – Parece que essa casa pinga! – o dono da casa entendeu que era o momento de molhar a língua dos foliões).
Agora é a vez das danças profanas, que se exibem segundo a preferência do dono da casa. Por exemplo, a dança do Curraleiro, observada durante uma demonstração da Folia de Reis em Posse. O curraleiro parece uma variação do catira e do samba de umbigada: formam-se dois pares que se colocam vis a vis, cantam, sapateiam, fazem menção de umbigada, depois trocam de posição (sempre ao toque do tambor), fazem evoluções em forma de um novelo, que se enrola e se desenrola, com graciosos trejeitos. O nome da dança Curraleiro justifica-se como designativo de uma raça de bois que era comum na região e que se habituava facilmente ao curral.
Após o divertimento profano, os foliões novamente se concentram na sua cantoria (religiosa) e assumem a postura ritual entoando o canto da despedida (ou cantorio do dono da casa), ao mesmo tempo pedindo esmola para o Santo Reis e agradecendo:
Deus vos salve a claridade
Deus vos salve o claro dia
Aqui está meu Santo Reis
Com seu terno de folia
Vem pedindo a sua esmola
Pro festejo do seu dia.
No cantorio explica-se ao dono da casa por que deve dar a esmola ao Santo Reis (assim individualizado e representado na bandeira da folia como uma só pessoa):
Quando dá sua esmola
põe o seu dinheiro a juro
Quando fô no fim do mundo
tem sua salvação segura.
Deus lhe pague sua esmola
Deus lhe dê vida e saúde
A esmola é caridade
caridade são virtude.
De entremeio com as referências essenciais do cantorio, cantam-se algumas quadras ocasionais, que variam de folia para folia, mas todas têm a indispensável conclusão:
Despedida, despedida
por cima do coração
Despede do Santo Reis
e alferes e folião.
(Este artigo, revisado pelo autor, foi originalmente publicado no livro “Intersecção Goiás-Bahia”, de Emílio Vieira, Goiânia, Kelps, 2015, a ser lançado em breve).
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])