Homo cada vez mais Sapiens
Diário da Manhã
Publicado em 5 de janeiro de 2016 às 21:40 | Atualizado há 4 meses
Dizia meu pai: o homem não é perfeito, porém perfectível. Esta frase sempre me animou entre o fígado e a alma, como a aproximação do elfo filipino ao desabar do céu, para me oferecer um guarda-chuva retrátil a preço de ocasião. Ao cabo deste tormentoso 2015, tiro os olhos do contingente e encaro o imanente.
Ou, por outra, permito-me perlustrar mais de 5 mil anos de história, dos povos mesopotâmicos em diante. Pelos caminhos da perfectibilidade, a humanidade progrediu extraordinariamente. Por exemplo, inventou a válvula Hydra. Nem se fale dos avanços tecnológicos mais recentes, a começar pelo computador, instrumento providencial, disposto a assumir a nossa própria personalidade ao nos engolir no estilo sucuri, quer dizer, sem mastigar a presa. A maioria dos usuários do computador já foi jantada, desde os anciãos até as crianças, o que me alegra sobremaneira.
Penso no futuro, nas prodigiosas consequências disso tudo para o cérebro humano, sem descurar da decisiva contribuição do celular, apanágio indispensável ao Homo Sapiens, na acepção correta da expressão, com instrução facilitada desde os primeiros passos na vida, alocado o aparelho já no berço. Sapiens mesmo, enfim, ora viva. Avanço irreversível, macro e micro. Deste ponto de vista, sugiro, a quem as possuir, jogar no lixo as enciclopédias de qualquer origem para valer-se exclusivamente da sabedoria cosmogônica da Wikipedia.
Aqui me abalo a fazer algumas propostas com o intuito de apressar o progresso, ou seja, o ritmo da perfectibilidade. O assunto é cultura. Sugestões em ordem esparsa, sem hierarquizá-las ao sabor da sua importância, ou urgência. A seguinte, de todo modo, haveria de ser priorizada: convoque-se Paulo Coelho para reescrever a Divina Comédia. Coelho dispõe da natural capacidade de captar a transcendência, de desvendar o mistério a pairar entre Céu e Terra, insondável à vã filosofia das mentes comuns. Do túmulo, Dante Alighieri agradece. Aliás, não entendo por que Philip Roth, em tempos de Coelho, não desiste de escrever suas reminiscências. Enfadonhas, além de prolixas.
Outra sugestão, de significado similar: chamem Andy Warhol para repintar a Capela Sistina, não lhe faltam sensibilidade e conhecimento técnico para tanto, com a possibilidade de melhorar o semblante da Sibila de Cumas, talvez ao recorrer às feições de Marilyn Monroe. E pergunto, de chofre: o interior da Catedral de Chartres não se prestaria como cenário de uma fantasmagórica instalação? E que tal substituir as estátuas de Giovanni Pisano no Museo dell’Opera del Duomo de Siena por graciosos móbiles de Calder?
Sinto a necessidade imperiosa de assegurar que a arte contemporânea encontrará a sua definitiva consagração, destruída finalmente a sardônica e desprezível ironia de Duchamps. Deixem de encenar Shakespeare, coloquem em seu lugar as novelas da Globo, uma televisão que glorifica o Brasil e que haveria de ser imitada mundo afora pelos alienígenas, desde que se disponham a alçar o público aos elevados níveis ideológicos e culturais do telespectador nativo. Estamos na rota certa, concordo, há, contudo, como melhorá-la. Por exemplo, ao transferir Hollywood para as margens da Lagoa Rodrigo de Freitas.
No meu pequeno mundo, instala-se um armário para conter alguns ternos de lamentável casimira inglesa. Passo a agredi-los, para dar o exemplo, com unhas, tesoura, canivetes, cigarros acesos, serrotes e furadeiras, de sorte a rasgá-los em pontos tópicos e dar prosseguimento à moda já inaugurada, felizmente, dos jeans em frangalhos. Temos de ser muito mais ousados no ataque às roupas de antanho. Houve tempo em que patéticos cavalheiros britânicos, usuários de paletós de tweed ou de cashmere desgastados pelo uso nos cotovelos, cobriam o tecido esgarçado com proteções de couro ou camurça. Pois deixemos o cotovelo à mostra, sem esquecer de furar o paletó recém-comprado.
Sim, é preciso ir em frente, sem arrependimentos, nesta arremetida em busca tanto do despojamento quanto da síntese. Reduzir a língua falada a cem palavras e tudo que se diga em duas linhas ao recorrer à escrita. Adjetivos? Bom, mau. Bonito, feio. Simplifiquem, exijam cada vez menos dos neurônios. Voltem seus pensamentos para objetivos práticos e imediatistas, a ser claro que a felicidade individual é a meta e o dinheiro sua garantia.
Passo à contemplação da situação atual, o patamar atingido até o momento na milenar escalada da perfectibilidade. A lei do mais forte em vigor adequá a humanidade às leis da natureza. Assistimos, portanto, ao triunfo da Razão, e não me refiro àquela advogada por um punhado de sonhadores do século XVIII, ditos iluministas, quando o único a merecer a definição é Thomas Alva Edison, que jamais se arvorou a pensador.
O problema mais sério a afligir a civilização em progresso é a superpopulação do planeta, mas não há guerra atômica que não possa resolvê-lo.
(Mino Carta, diretor de redação. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital e criou o Jornal da Tarde – Texto originalmente publicado na CartaCapital)