Brasil

Coerção conveniente

Redação DM

Publicado em 9 de março de 2016 às 00:53 | Atualizado há 10 anos

É possível ter sido culpa do tempo, “esse devorador das coisas”, já em Ovífio! Quem sabe, excesso de zelo ou, o mais profundo da história, da sociologia e outras ciências, comprometidas com ódio racial, preconceito de marca fenotípico, pra não dizer genotípico. Suposto moralismo ético, cínico, aparentemente preocupado com moral, leis, bons costumes, supondo ser exemplo para o povo e o país. Quem sabe, pura xenofobia contra nordestino ousado, intrépido, inconteste liderança que chegou a presidência da República como torneiro mecânico, insolente, sem autorização da Casa Grande & Senzala. Tornou-se o mais popular Presidente da República da história política do país, sem alvará concedido pela direita anacrônica e babaca. Acha que Lula estaria se demorando muito a reconhecer o seu lugar de pau-de-arara com origem no mais puro sertão. A inteligência e o talento seriam privilégios sulinos, centro-oestinos, sudestinos. Esse paradigma ou anacronismo histórico precisa ter fim. Os que ofendem Lula e a nação até aplicando mal o direito, desrespeitando a justiça, que é o fim, certamente nunca leram Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Não sabem da inalcançável força do sertanejo, sobretudo os que conseguem ultrapassar a “cultura da fome” e alcançar a da transformação. De todo modo, sem esquecer que o sertanejo, antes de tudo “é um forte”, um texto de Guimarães Rosa é evidente, inevitável:
“O senhor faça o que queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão.”
“Sertão é isso: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.”
“O sertão aceita todos os nomes.”
“O sertão é do tamanho do mundo.”
O que foi exposto tem muito ver com dois estranhos desacertos recentes do Poder Judiciário do Brasil. Primeiro, a inoportuna decisão do Supremo Tribunal Federal, mandando prender cidadãos a cumprir penas antes do trânsito em julgado da sentença, ofendendo a regra básica da “presunção de inocência”, contra o qual publiquei artigo nesse jornal. Em segundo lugar, a questionável condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrida na última sexta-feira, dia 4 do mês em curso em São Paulo. O ato com claros excessos midiáticos, que à luz da verdade não persuade – teria como objetivo levar Lula a ser ouvido por autoridade da Polícia Federal naquela cidade; notando-se que o ex-presidente nunca se negou a fazê-lo, não dificultou, não criou qualquer embaraço a justificar condução coercitiva, a que realmente existe, porém a ser aplicada nos limites legais, jamais com excessos, abusos, a ponto de chegar a Lula e sacudir o País de ponta a ponta, surpreendendo bom senso, sensatez, normalidade, razoabilidade, dentre outros valores exigidos pela sociedade que, apesar de mais vezes vítima, não é ingênua ou tola.
Seja Sérgio Moro contra Lula, abuso de autoridade, excesso de zelo, exibicionismo autoritário ou o que for, o certo é que a condução coercitiva do ex-presidente Lula sob pretexto de que precisava ser ouvido, foi uma tremenda injustiça, uma coação, inclusive moral, desnecessária, visivelmente abusiva, pra não dizer exagerada. E o pior, quiseram dar-lhe conotação ou a impressão de ser necessária. A bem dizer, é somente conveniência de um antigo pensamento arbitrário, em parte ainda presente, vigente, ressurgindo ilegalidades que, em razão de praticarem absurdos em nome da lei, deixam semelhanças com as do tempo das guerras santas e inquisições, fortes forjadoras do inquérito policial brasileiro, onde judiar, prender, trancafiar, retaliar e abusar, são conceitos sempre em moda.
Como o ex-ministro da justiça José Gregori, do governo de Fernando Henrique Cardoso, de quem transcrevo texto a seguir, também tive a impressão de que o Juiz Sérgio Moro desejava trancafiar Lula mas não teve coragem. Ora, Lula, à guisa de argumentar, nunca se negou ou dificultou o ato. Onde estaria pelo menos o receio? Foi assim que o ex-ministro citado, afirmou:
“O que parece é que esse juiz (Sérgio Moro) queria era prender o Lula. Não teve a ousadia de fazê-lo e saiu pela tangente”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, homem sensato e reconhecidamente equilibrado, considerou a condução coercitiva contra Lula um “exagero”. Sabia que não havia motivo plausível, razoável ou necessidade imperiosa para torná-lo “prisioneiro”, chegando Lula a dizer, no mais profundo de sua indignação:
“Jamais me recusaria a prestar depoimento. Não precisaria ter mandado uma coerção. Era só ter convidado”.
Estão estampadas na imprensa as muitas controvérsias jurídicas, mostrando a inoportunidade da condução coercitiva, que me parece inócua, contra pessoa com direito ao silêncio e a não se autoincriminar, o chamado nemo tenetur se detegera, de que se vale o notável advogado criminalista, Pedro Paulo de Medeiros,em convincente artigo no jornal O Popular (05/03/16) , onde ensina sobre o caso:
“Na academia eu já escrevi sobre isso, nos idos de 2013/2014: Condução coercitiva é de quem pode ficar em silêncio e não é obrigado a contribuir com a acusação que paira sobre si, é inócua, além de inconstitucional (viola regras constitucionais) e inconvencional (viola convenções internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil, independentemente de quem é o conduzido (inocente ou culpado, rico ou pobre, esquerdista ou direitista)”
Dentre outros renomados juristas, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, foi enfático ao criticar duramente a decisão do juiz Sérgio Moro de mandar conduzir coercitivamente o ex-presidente Lula:
“Condução coercitiva? O que é isso? Eu não compreendi”, acrescentando incisivo:
“Só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado”, fulminou um dos mais atuantes membros do STF, ainda chegando a advertir: “precisamos colocar os pingos nos ‘is’. Vamos consertar o Brasil”. “Não vamos atropelar”, ensinou.
Concluo que não adianta a notinha apressada, já sem crédito, divulgada pelo juiz Sérgio Moro, tentando corrigir a infelicidade do erro praticado. Tentou Justificar o que é injustificável, no estado de direito, democrático, revelando incoerências e inegáveis dúvidas no seu ato infeliz, tão infeliz que as manifestações de apoio a Lula crescem e se espalham pelo Brasil afora, forçando-me a fazer coro a Sófocles que, em seu drama Antígona, já dizia: “Por mais que os tiranos apreciem um povo, o povo fala. Aos sussurros, a medo, na semi-escuridão, mas fala”.

(Martiniano J. Silva é advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras, IHGGO, UBEGO, AGI, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM)

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