Carros cinza, prata e grafite (além dos pretos e brancos)
Redação
Publicado em 5 de março de 2016 às 22:14 | Atualizado há 9 anosFui a um dos shoppings centers locais para trocar uma camisa que ganhei. Aproveitei para ir à livraria e depois assistir um filme, os dois únicos motivos que me levam a esse lugar. Saindo do cinema, encontrei-me com um velho amigo que estava desesperado.
– Perdi a chave do meu carro. Me ajuda a encontrá-la?
– Que carro é?
– Ele é meio cinza, assim prata, ou grafite.
– Mas e a marca? O modelo?
– Esqueci, estou tomando remédio controlado, depois que perdi o emprego e separei.
Olhei no bilhete do cinema e conferi seu lugar, refiz o caminho até a sua poltrona e vasculhei junto com dedicada funcionária da limpeza todo o chão e vãos suspeitos. Nossa, como as pessoas sujam a sala numa única sessão! Eu nunca havia reparado. E perdem coisas. Também achamos dois celulares, uma aliança, uma carteira pequena e… pasmem; um pacotinho de preservativo aberto. Mas chave, nada. Só um chaveirinho de urso panda com um único exemplar.
Perguntei como era o chaveiro e ele disse-me que era o escudo da seleção brasileira de futebol. Abstive-me de qualquer comentário. Mas em segundos ele disse que havia trocado pelo do Barcelona, o time catalão. Uma seleção mundial e não esse arremedo de fantoches fantasiados de atletas que tentam representar algo que não mais somos, um time.
Resolvi sair do estabelecimento, ir para o estacionamento. Achar o tal misterioso veículo. Fiquei estarrecido ao ver que lá fora noventa por cento dos carros ali parados eram da cor cinza, prata ou grafite. Diversos tons de cinza, claro; mas de uma pobreza colorífica imensa. Prata alguns, mas sem o brilho contumaz do metal. Os modelos mais grandalhões eram grafite, talvez seja a cor dos abastados. Talvez seja a cor do burro quando foge. Ali e acolá, uns carros brancos e outros pretos e os taxistas morrendo de medo de um tal de Uber. Não conheço esse modelo, mas pelo que ouvi falar é moderno, sensacional, mais barato e prático. Acho difícil se adaptar ao Brasil, que é exatamente o contrário.
Meu amigo lembrou-se do local onde havia deixado o seu possante. Descreveu como um carrinho compacto. Lá – no exato ponto descrito – estava um carro amarelo, daqueles americanos, quase um acinte diante da mesmice que o rodeava. Duas faixas pretas no capô, duas portas, oito cilindros em V. Lembrei-me da minha infância, eu admirava esses bólidos, que na América eles chamam de “muscle cars”. Parei um pouco e respirei fundo.
Ao redor as pessoas passavam rápido, céleres e ao mesmo tempo sérias. Não pareciam ter objetivos ou destinos. Algumas carregavam sacolas e nem mais apresentavam aquela alegria efêmera da compra e do consumo. Interessante como muitas iam andando e falando ao celular e outras também caminhando e teclando furiosamente. Somente eu e meu velho parceiro conversávamos animadamente. Sobre carros, futebol e mulheres, a tríade masculina por excelência. E eu ria muito. Ele podia ter perdido a memória recente, mas a antiga estava ótima.
Por um momento até esquecemo-nos de lembrar que existia uma “caça ao carro”. Discorremos sobre as agruras do casamento, os caminhos tortos da profissão e de filhos falamos também. Então ele se despediu, agradeceu a companhia e abriu o carrão cor do sol.
Eu nada entendi. Rapidamente explicou que o carrinho era da sua ex-mulher, que ficara com tudo dele. Voltando a respirar e a trabalhar bastante esse era seu carro novo. Lembrou-se. Saiu tranquilo e insólito com sua bermuda colorida, bata indiana e chinelo. Talvez o diferente sejamos nós, que imitamos todos com carros iguais, roupas iguais e problemas idem.
JB Alencastro é médico e escritor