No breu das tocas
Redação DM
Publicado em 9 de abril de 2016 às 03:06 | Atualizado há 9 anosNão dá pra esperar que patriarcas, novos ou os de velha cepa, operem em favor da liberação das mulheres; bem ao contrário, sua condição de imperativos dominadores da vida individual, social e simbólica destas mesmas mulheres lhes impede por razões óbvias de operar em favor de algum tipo de ruptura com o historicamente estabelecido.
Quero dizer com isso que o debate da equidade de gêneros tem contornos bastante diferenciados nos interiores do Brasil. Estou afirmando que “sim”, o Brasil é país machista e de fato, essa categoria não é homogênea e equivalente. Talvez o mais apropriado seja tratarmos de “machismos”. De outro modo, o machismo do Rio Grande do Sul é distinto daquele praticado na Bahia; aquele que se realiza no Rio de Janeiro é diferenciado do que acontece em Goiás; o machismo do litoral não é similar ao dos interiores do país e assim, sucessivamente.
Homogeneizar o termo é armadilha perigosa e que esconde especificidades determinantes para o próprio combate dessa tradição cultural forte, entranhada e que apetece com enorme eficácia no comportamento comum e cotidiano do indivíduo brasileiro.
Dito isso é importante tornar claro que a matriz cultural judaico-cristã, católica, lusitana, ocidental e que dá forma ao cipoal de percepções, valores e sensibilidades a envolver a condição da mulher brasileira é a mesma que gera valor ou contra-valor para temas afins e que se relacionam a afetos ou formas de encontros que acontecem fora do típico conservadorismo nacional tais como: relações homossexuais; envolvimentos heterossexuais de pessoas de idades consideravelmente distintas; relações inter-raciais, etc.
Temas delicados e que exigem, portanto, seriedade no trato e na abordagem. A última “marcha a ré” acerca dessas discussões são os absurdos feitos a partir de certa nomenclatura e que agora é “arroz de festa” na boca da direita, estou falando da tal da “ideologia de gênero” onde uma confusão oceânica é assumida e vitaminada por gente que sabe do tema da mulher e de minorias sexuais a partir de piadas preconceituosas, de gaiatices de mesa de bar ou do besteirol corriqueiro da infame TV brasileira.
O resto da história já podemos imaginar! Igrejas pentecostais de evidente cariz reacionário exercitam seu ódio no dia a dia com macabra mistura a envolver pecado, sexualidade, demonismo e escatologia; nesse universo histérico, segmentos neopentecostais da igreja católica alimentam o fogo do ódio e se somam ao drama e finalmente a inércia da apatia e do analfabetismo político imperiosos nesse país obscuro fazem o arremate dessa lastima cultural.
É preciso que a sociedade civil exija fóruns ou espaços minimamente qualificados para tais discussões; é fundamental que as deliberações por leis e normatizações a esse respeito perpassem por reflexões distintas que não o velho ódio de classe e que não abre mão da negação do outro, da sua individualidade e da suas formas de ser.
As questões de gênero são objetiva e diretamente questões de classe e isso precisa ficar bastante claro para os militantes sociais; a liberação sexual é concretamente a liberação do trabalho, sobretudo, do trágico trabalho salarial e da sua condição de mundo submetido aos rigores espoliantes do capital moderno em grave crise de acumulação.
O controle da sexualidade é a mais eficaz forma de disciplinamento que pode haver. Quem não ama, sofre; quem não é erotizado (que vem do grego “eros”: vida) morre estando vivo, sucumbe em plena atividade, falece em pleno movimento. O controle do sexo é, de outro modo, o controle da própria vida e quem discute isso muito bem e com enorme propriedade é, além do bom e velho pai da psicanálise, Sigmund Freud, o rebelde Michel Foucault.
Não faz sentido! Como personagens sociais ou políticos movidos por toda sorte de ódio, de preconceito e orientados pela norma cultural predominante, pela rigidez de uma ordem eurocêntrica, civilizada na pior acepção desse termo e carregada com uma codificação cultural livre de qualquer avaliação crítica e séria podem avaliar a rebeldia de corpos, desejos e preferências sexuais?
É como esperar que Ronaldo Caiado avalie com alguma seriedade ou decência o MST; que Bolsonaro se refira adequadamente às causas e bandeiras de Jean Willis; ou que a TFP ou Opus Dei trate com seriedade e alguma centelha de humanidade o movimento legítimo das prostitutas por reconhecimento profissional.
Não cabe, não tem sentido ou pertinência. Existem objeções intrínsecas e estruturais para o trato destes temas fundamentalmente singulares e específicas. As demandas desses setores minoritários e historicamente marginalizados serão evidentemente destratados e desconsiderados por esses entes da reação e do conservadorismo.
De outro modo, a inclusão social, política e econômica desses setores historicamente desvalidos, aliás, determinação de todo o ordenamento jurídico nacional, só é possível se estes mesmos segmentos se afirmarem como sujeitos e agentes históricos e operarem, a partir de experiências concretas e vividas, na construção de suas normas, regras e dispositivos jurídicos.
Aquela máxima de Karl Marx que diz que “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” cabe perfeitamente àquilo e que aqui se pretende defender. São eles/elas que irão se libertar ou não serão libertos/libertas.
(Ângelo Cavalcante, economista, cientista político, doutorando (USP) e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Itumbiara)