Vampiro de Curitiba ressurge enigmático em livros da Todavia
DM Redação
Publicado em 16 de maio de 2025 às 20:46 | Atualizado há 10 horas
Recluso até o fim, o escritor curitibano Dalton Trevisan reaparece em reedição de sua obra pela Todavia. Sete títulos de 37 previstos chegarão às livrarias goianas no próximo dia 9 de junho e revelam a força da palavra daltoniana
Marcus Vinícius Beck
Meu velho, eu tentei, juro que tentei. Não era fantasia, era necessidade: encontrar o curitibano Dalton Trevisan. Flanei pela Boca Maldita, por bancas de revista, sebos e cafés. Nada.
Tive de me contentar com o fracasso como se fosse um Benevides Paixão, o bravo jornalista criado pelo cartunista Angeli. Achava-se um Paulo Francis, o Benevides, mas nunca passou da correspondência no Paraguai. É, vendo assim, esse exemplo não era lá muito edificante.
Mas o Vampiro de Curitiba, esse autor envolto em mistério, reunia singularidades. Só era possível vê-lo pelas ruas da capital paranaense à luz do dia, de boné enfiado na cabeça, jaqueta discreta, óculos arredondados, calça jeans e tênis, com olhar voltado ao chão.
Tinha estatura mediana, era magro, exibia pele alva e cabelos brancos. Seu semblante, diziam os mais próximos, trazia expressão cândida. Soava vampiresco. “Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete”, escreve sobre si próprio em “20 Contos Menos”, de 1979.
Na ocasião em que o ilustre autor fizera 90 anos, em 2015, o repórter Marcos Rodrigo Almeida, então no jornal “Folha de S. Paulo”, arriscou-se em Curitiba à cata do escritor recluso. Interpelou-o em uma esquina vazia. “Já sei que você estava assediando meus amigos. Me deixe em paz”, disse Trevisan, lançando ao jornalista um olhar incomodado.
Assim era Trevisan, morto em dezembro do ano passado: recluso. O contista transferiu sua obra ainda em vida para a editora Todavia, cujos direitos estavam sob o guarda-chuva editorial da Record desde os anos 1970. Como dispensava aparições públicas e se mostrava avesso a fotografias, o autor ajustou os detalhes contratuais por meio de bilhetes e cartas.
Quem os repassava à editora era seu agente. Isso em plena sociedade digital, com aplicativos de mensagens e e-mail. Trevisan decidiu tudo: formato de seus livros, projeto gráfico, material inédito que sairia, trechos de diários, cartas para amigos, bilhetes e desenhos.
A Todavia informa que os primeiros seis livros, de um conjunto de 37, chegarão às casas do ramo no próximo dia 9. Um dos títulos publicados nessa leva é a antologia de contos “Educação Sentimental do Vampiro”, organizada por Caetano W. Galindo e Felipe Hirsch.
É um passeio pela obra do contista curitibano, por seus temas prediletos e obsessões literárias, e serve também para ilustrar ao leitor as mudanças estilísticas e pontos de vista adotados durante décadas. Aparecem o sexo, a violência, a graça e, principalmente, o absurdo da vida urbana — com amantes desesperados cometendo crimes sanguinários.
Ou seja, leitor, não espere uma escrita uniforme. Sim, os contos desnudam um buliçoso artista das palavras. Se há mérito no trabalho de Galindo e Hirsch — e há muitos, ressalte-se —, é porque existe nele uma função nobre: apresentar o universo vampiresco de Trevisan.
Trila aos olhos a sinfonia retórica das frases trevisanianas: Vampiro de Curitiba descoberto. Ou, a depender do percurso literário, revisitado. Caetano W. Galindo, professor no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), defende a tese segundo a qual Trevisan falava as coisas mais horripilantes de uma maneira, digamos, original e bastante intensa.
Concisão como estilo
Outro livro a ser publicado pela Todavia é a obra-prima “O Vampiro de Curitiba”, que incluiu Trevisan dentre os principais nomes da literatura brasileira. Descrito pela Todavia como “deliciosamente subversivo”, narra as histórias do anti-herói Nelsinho — tudo isso, claro, numa prosa polida, sem adjetivos, advérbios e certos tipos de verbos. Concisão total.
Além de “O Vampiro de Curitiba”, a Todavia lançará em junho “O Beijo na Nuca”, “Chorinho Brejeiro”, “Desgracida”, “Ah, É?” e “Pão e Sangue”. São títulos que ilustram uma máxima de Trevisan: “O bom escritor nunca se realiza: a obra é sempre inferior ao sonho. Ao fazer as contas, percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada.”
Sobre o ofício literário — ao qual se dedicara entre 1945 e 2023 —, Trevisan dizia que não escreveu para mudar a vida nem melhorar o mundo. “O papel branco vale mais coberto de palavras? Toda a sua desculpa de escrever”, afirmava. “Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta. Nunca termina uma história, basta reler para começar de novo.”
Trevisan, aliás, reclamava dos excessos linguísticos cometidos pelo amigo Otto Lara Resende, a quem atribuía a mania de enrolar demais nos textos. Econômico com as palavras, o contista correspondeu-se com o ensaísta Antonio Candido, o jornalista Ivan Lessa e o cronista Rubem Braga. Em pauta, a literatura: debatiam sobretudo questões estilísticas.
É, meu velho, eu fracassei, eu sei que fracassei. Não encontrei Dalton Trevisan em Curitiba. Andei pela Boca Maldita, bancas de revista, sebos e cafés, percorri as ruas Ubaldino do Amaral e Amintas, fui a restaurantes. Nada. Mas quer saber? Sua obra vive em mim.