Roendo restos de Ronald Reagan
Redação Diário da Manhã
Publicado em 23 de maio de 2025 às 12:06 | Atualizado há 3 dias
Banda pernambucana traz show político-musical ao Shiva, hoje, com repertório que transformou música popular nos anos 1990. Entre libelos politizados e letras ternas, grupo mangue radiografa a lama e o caos do Brasil
Marcus Vinícius Beck
Roendo os restos de Ronald Reagan, o Mundo Livre S/A rebate discursos alienantes, nesta sexta-feira (23/05), a partir das 20h30, no Shiva. É, caro Xico Sá, embarcaremos em um show-viagem de alívio antifa após a walking dead folia destruir riso & flora brasileiros.
Estamos vivos. Esquematizados no samba noise. O mangue ressoa — altíssimo. “Um vírus contamina pelos olhos, ouvidos/ Línguas, narizes, fios elétricos/ Ondas sonoras, vírus conduzidos a cabo/ UHF, antenas-agulhas”, vocaliza o mangueboy, cantor e guitarrista Fred Zero Quatro, na faixa “Manguebit”, a primeira do disco “Samba Esquema Noise” (1994).
Dois anos antes, Zero Quatro criara um texto-manifesto. Os neurônios do caranguejo com cérebro produziram frases lapidares sobre a manguetown. “Mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade e caos”, sentencia o fundador do MLSA, chancelado pelo jornalista Renato L., “ministro das comunicações” do manguebit.
Trinta e três anos depois, o Brasil se neoliberalizou ainda mais. Zero Quatro fincou suas antenas na lama e no caos, enquanto o deus mercado lhe fornecia a bola do jogo. Para ele, também jornalista, os mangueboys são interessados em pós-história e plasticidade, mundo pós-algoritmo e fundamentalismo tecnológico, pós-identitarismo e pensamento não digital.
Então, bróder, seguinte: o Shiva será um espaço massa para você colar hoje à noite. E vou além — é ali, meu rapaz, que o Mundo Livre nos guiará a uma viagem estético-política que começa no punk e desemboca no mangue. Essa história se inicia nos anos 1980 — pouco tempo depois de a Lei da Anistia ter livrado os militares da cadeia pelos crimes da ditadura.

Da UFPE ao samba esquema noise
Fundado em 1984 — seis anos após o Congresso Nacional promulgar a anistia —, o MLSA guiava-se pelo ímpeto faça-você-mesmo. Na UFPE, onde Zero Quatro estudara Jornalismo, a banda fizera seu primeiro show. Faltava estrutura, contudo. Os estúdios eram precários, quando era possível encontrá-los, e os equipamentos e locais para tocar não existiam.
Foram dez anos de batalhas até gravar “Samba Esquema Noise”. Nesse tempo, Zero Quatro meteu-se em furadas e ciladas, viu a grana minguar e lascou-se. Faz bicos, dias difíceis, aqueles. Restou-lhe o manguetown. Da experiência paulistana, trouxe composições — uma delas, “Seu Suor é o Melhor de Você”, viria a ser lançada em “Guentando a Ôia”, de 1996.
A guitarra ecoa distorcida, ondulante, modulada — timbraço. Deixa vestígios em nossos ouvidos flagelados. Cordas elétricas misturadas a batuques percussivos. Versos situados entre Karl Marx e Jorge Ben: “Trabalho, trabalho, novo/ Trabalho, trabalho, novo/ Trabalho, trabalho, novo.” “Livre Iniciativa”, joia fumegante na mão, luz irreluzente, ideia na cabeça.
Publicado pela Bengala Records, “Samba Esquema Noise” altera o percurso feito por Jorge Ben. Se o criador do “Samba Esquema Novo” propusera em sua “África Brasil” (1976) tocar samba com guitarra, Zero Quatro e seu Mundo Livre levaram o cavaquinho para a linguagem do rock, numa inversão estética subversiva. Desde então, é assinatura deles.

Depois desse disco, a banda radicalizou o discurso. Reapareceu barulhenta em “Guentando a Ôia” (1996). O encarte mostra duas imagens ilustrativas: galo de briga e jogo de azar. Zero Quatro qualificou a obra fonográfica como naturalista e, ao mesmo tempo, selvagem.
Uma selvageria pop, digamos. Acelerado e indomável, o cavaquinho agora desliza pelo circuito bateria-baixo-guitarra no mangue-rock “Free World”, um clássico dos anos 1990. Em seguida, a guitarra entra distorcida em “Destruindo a Camada de Ozônio” e depois o baixo grooveia, espertão e dançante, para enfiar-se em comentários sibilantes com as seis cordas.
Militando na contra-informação — para evocar o libelo sonoro de “Guentando a Ôia” —, o MLSA chegaria ao olimpo da música brasileira com “Carnaval na Obra” (1998) e “Por Pouco” (2000). Ainda assim, segundo o crítico musical Pedro Alexandre Sanches, a banda seria classificada como panfletária “por vozes do aparato midiático despolitizante”.
No primeiro trabalho, Zero Quatro inverte os papéis ao ironizar que “computadores fazem arte” e “artistas fazem dinheiro”. Já no segundo álbum, criando um eu lírico absolutamente apaixonado, o mangueboy mira a sutileza poética em “Meu Esquema”, um hit samba esquema novo lançado no álbum que saiu no ano 2000. “Ela é meu treino de futebol”, entoa.

Mangueboys vs casa-grande
Apesar das divergências entre os mangueboys, Zero Quatro defendeu Chico Science da pena rancorosa do escritor conterrâneo Ariano Suassuna na música “O Africano e o Ariano”, gravada em “Guentando a Ôia”. “O negro sempre quis sair do gueto”, constata, salientando que os povos africanos foram levados aos EUA e lá criaram o jazz e o blues, o gospel e o soul, o R&B e o rock, o rap e o hip-hop. “A alma africana sempre esteve no olho do furacão.”
Escreve Alexandre Sanches no ensaio “‘Mundo Livre S/A 4.0’ Ilumina o Samba de Combate de Zero Quatro”: “Menos que nacionalistas, as diatribes de Ariano Suassuna contra Chico e o manguebit seriam, para Fred, mais uma representação do modelo colonial-racista de casa-grande & senzala. Gilberto Freyre agitava-se morto-vivo no túmulo do maracatu.”
Como percebe essa peça jornalística, publicada no site “Farofafá” por Alexandre Sanches quando o escritor Pedro de Luna lançou biografia do MLSA em 2024, “a acusação depreciativa foi diminuindo na mesma medida em que diminuía a repercussão da banda-repórter entre o operariado jornalístico – para alegria e alívio dos patrões”.
Isto é, midiaticamente deixava de existir, o Mundo Livre. Mas os mangueboys resistiram, claro. Nos anos 2000, lançaram os discos “O Outro Mundo de Manuela Rosário” (2003) e “Combat Samba” (2008), este referência ao grupo punk inglês The Clash. Nessa época, fizeram também o EP “Bebadogroove”, distribuído pela Monstro Discos e que faz uma alusão em seu nome ao clássico “Bebadosamba”, do sambista Paulinho da Viola.

Zero Quatro não aderiu às manifestações de Junho de 2013 — como fizera, por exemplo, seu colega de geração Marcelo Falcão, de O Rappa. Revelou-se crítico ao impeachment da então presidente Dilma Rousseff, que entende ter sido um golpe sobre o qual, vira e mexe, trata em entrevistas à imprensa. Para o mangueboy, o processo democrático se rompeu em 2016.
Entre “Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa” (2011) e “Mundo Livre S.A vs Nação Zumbi” (2013), a crise política se intensificou, criando um cenário que, em 2015, levaria secundaristas pelo País a ocuparem escolas públicas. Dois anos depois, trabalhadores e estudantes saíram às ruas de Goiânia para protestar contra as reformas trabalhista e previdenciária de Michael Temer.
Este repórter era um dos 30 mil manifestantes no cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera, no Setor Central, na manhã de 28 de abril de 2017. Na ocasião, o estudante Matheus Ferreira, aluno do curso de Ciências Sociais da UFG, teve traumatismo cranioencefálico (TCE). Um cassetete rompeu-se em sua cabeça. Um policial militar o golpeou. Momento capturado pelo fotógrafo Luiz da Luz.
É a capa do disco “A Dança dos Não Famosos” (2018), que saiu pela Monstro Discos. Quando analisara a imagem, Zero Quatro observou que, na verdade, Matheus parecia estar dançando — como numa coreografia dramática. “A esperança usa cassetete/ Feito com madeira da elevação”, canta o mangueboy em “Batismo NukGruuvk”, na abertura. “Jovem em situação de risco.”
Envolvente e dançante, o disco remete ao quadro “Domingão do Faustão”, que representava, para Fred Zero Quatro, o entretenimento alienante da classe média. Por isso o suingue, os grooves flutuantes. Por isso as ideias para a pista, os ritmos para o corpo. Por isso a dança, a dança dos não famosos. O programa televisivo — lembremos — era exibido nas noites de domingo na TV Globo — antes do “Fantástico”, o estandarte jornalístico da família.

O mangue contra a fake news
Sonoramente, o cavaquinho — recurso estético do MLSA — cede espaço a um piano quente, meio Nicky Hopkins, meio Rolling Stones. Mas aquele instrumento volta, vivíssimo, aos arranjos de “Walking Dead Folia (Sorria Você Alta)”, de 2022. O disco deleita o ouvinte com participações de Jorge Du Peixe e Doralyce. É dela a voz que ressoa na faixa “Melô das Musas”, dessa vez em versão repaginada. A canção saíra lá atrás, em “Samba Esquema Noise”.
No front contra a algoritmização do pensamento, a banda ataca o capitalismo pós-industrial no mangue-rock “Usura Emergencial”. “Wall Street gera desnutrição/ Anticorpo é carne e feijão/ Farta usura emergencial/ Contamina”, dispara Zero Quatro, que engatilha a palavra e dispara versos sem floreios no refrão pandêmico — era tempo de covid, amigos.
Assim que a capa do álbum caiu nas redes sociais — vemos nela um folião verde e amarelo simpático ao horror necropolítico até que ele próprio vai parar no caixão —, houve um movimento pesado. O gabinete do ódio marcou perfis da Polícia Federal e de um filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. Tudo por causa de uma crítica à tiktokzação da vida política, tendência daqueles tempos em que estávamos quarentenados por causa do vírus.
Toda essa história, não se esqueça, será revisitada nesta sexta (23/05) no Shiva, em um show no qual o Mundo Livre S/A celebra 40 anos de carreira. A banda escolheu Brasília para iniciar a turnê, que começou ontem no Infinu — antes, contudo, rolou um bate-papo entre o biógrafo Pedro de Luna, autor de “Do Punk ao Mangue”, e o sambista do esquema noise Fred Zero Quatro. E nós, mangueboys e manguegirls, sobrevivemos roendo os restos de Ronald Reagan.
