Sandra Sá faz show gratuito em Inhumas
DM Redação
Publicado em 5 de setembro de 2025 às 20:21 | Atualizado há 7 horas
Marcus Vinícius Beck
No palco, Sandra Sá sorri. “Sou foda”, atesta, levando a taça à boca para saborear um vinho rosé. O tempo está seco. Faz calor. O público se volta para a artista. Suspiros eufóricos ressoam pelo Oscar Niemeyer. Ela se resfolega no microfone: “Somos fodas.”
Sandra, como você verá hoje em Inhumas, a 45 km de Goiânia, retorna à ancestralidade, carimbando a música preta brasileira com molejo que faz a gente mexer. Atenha-se, pois, àquela voz que tão bem entendeu o abrasileiramento do funk feito por Cassiano e Tim.
Elegante, sincera, coloca-se diante dos jornalistas, com olhar ensimesmado, sobrancelhas arqueadas, voz potente. Seu cabelo, preso, traz sobriedade, se enfuna na armação dos óculos. Apoia a mão esquerda embaixo do queixo, compenetrada no repórter que se aproxima.
Na entrevista coletiva, ela me fez uma confissão: “[James] Brown é do caralho, mas o suingue do Tim [Maia] é outra parada. Quando falo de Música Preta Brasileira, falo sobretudo de suingue. Os gringos são duros, pô! Eles não sabem jogar nas ancas.”
Lá atrás, em 1998, vasculhou o baú de seu ídolo. Daí, tirou o disco “Eu Sempre Fui Sincero Você Sabe Muito Bem”. Precisa mesmo falar por que gravá-lo? “É óbvio, é um documentário do Tim, porque ele merece, porque ele é gênio”, disse à “Folha de S. Paulo”.
Curtiu, sacudiu — esse é o lance. Em certa altura dos anos 2000, essa flamenguista ilustre cunhou a expressão “música preta brasileira”, que tece um trocadilho com a sigla MPB e faz referência à música popular brasileira. A expressão nasceu em sua casa, numa ocasião na qual estava o artista carioca Ivo Meirelles. Em 2003, gravou um disco com esse nome.
Aglutina baladas funk — afinal, “Black Is Beautiful”, não é? Até então, Sandra contava 23 anos de carreira. Descortina-a em canções que lhe acentuam a voz invejável. Faz “Soul de Verão”, cria “Enredo do Meu Samba” e despede-se da tristeza, mandando bye bye a ela.
Como um vulcão cuspindo lavas, funkeia mentes. Nascida em Pilares, na zona norte do Rio, cresceu escutando Tim, chefão do soul em língua portuguesa. Também ouvia o compositor da balada “A Lua e Eu” e o autor de “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”. Gravou seu primeiro disco, “Demônio Colorido”, em 1980 — que, diga-se, jamais entrou no streaming (é relíquia).
Lançado pela RGE, o disco foi concebido sobre a estética elaborada pelo tecladista Lincoln Olivetti. Seu espírito parece andar pelas 12 faixas. É samba-soul, gafieira-funk, com o baixo grooveando no ritmo do compasso, com a bateria baqueteando suingue, com a guitarra assobiando notas. “Quando eu me dou, eu me dou inteira”, canta, em “Pé de Meia”.

Corpo sonoro
Começou a tomar caminho próprio em “Sandra de Sá”, de 1982. Se o álbum de estreia soava orgânico, aqui há corpo. Abre com o hit “Olhos Coloridos”, sucesso desde a nascença, criado pelo funkman carioca Macau. Ao contrário do que se pensa e até se convencionou, a letra não fala de chapação canábica nem de colorações. Provoca, isso sim, reflexão antirracista.
“Vale Tudo”, de 1983, deflagrou a primeira explosão comercial de Sandra. O disco se destaca pelos arranjos cuidadosos. Dentre as músicas, o xodó é “Candura”, de Cassiano. A diferença, em relação ao primeiro álbum, se revela no dueto com o Tim Maia, levando-a ao olímpico da música com o mantra que repetimos às três da manhã, no quase-nada da madrugada. “Vale tudo/ Só não vale dançar homem com homem/ Nem mulher com mulher”, vocaliza.
A pupila e o mestre. Sandra, não por acaso, foi chamada de “Tim Maia de saias”. Quando os metais atacam, desenhando uma levada telegrafada em nosso inconsciente e induzindo uma insurreição de pés e mãos, a cantora foi às lágrimas no estúdio. “E tá demais, e tá valendo tudo”, entoa a soulwoman, como se os versos fossem o eco do que lhe rondava a cabeça.
Sandra passa a ser percebida como potencial lucrativo. Assim, entra em estúdio para gravar o disco de 1984. Dribla, no entanto, os caciques da gravadora. Sua força pop reluz na canção que acena ao candomblé, “Canto de Oxum”. Há, além disso, participação de Cazuza em “Sem Conexão com o Mundo Exterior”. Billie Holiday aparece em “I’m a Fool to Want You”.
Tal e qual Tim, converteu-se ao pop radiofônico. Foi, por isso, tachada de brega. Mas, na verdade, o que Sandra fazia era engambelar os dirigentes. “Eles achavam que eu estava fazendo exatamente o que queriam. Não estava. Fazia o que eles queriam, mas do meu jeito”, disse à “Folha”, quando lançou “AfricaNatividade”. Ainda bem.